quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Wilson Gomes* - A universidade e o tribunal identitário

Folha de S. Paulo

 

A instituição que resistiu ao bolsonarismo resistirá também ao identitarismo? 


Uma colega foi acusada de transfobia e racismo por ter errado o gênero de um adjetivo dirigido a uma aluna trans que via pela primeira vez em sua aula, por tê-la confundido com um homem gay. Sim, usar equivocadamente "chateado" em vez de "chateada" disparou uma espiral de insanidade na qual a professora foi acusada, julgada pelo coletivo, condenada e severamente punida, tudo em menos de 24 horas. 


Em discussão que se seguiu ao equívoco, gravada, a aluna sustenta três teses. Que a relação pedagógica é um piquenique igualitário em que alunos e professores levam o que têm e todos se sentam para compartilhar; que o aluno que pertence a uma minoria "historicamente subalternizada" tem prerrogativas pedagógicas que o põem acima do docente, inclusive a de realizar sua própria "curadoria" das fontes usadas na disciplina, recusando os autores brancos e europeus que constam da bibliografia; que qualquer atitude de contestação ou crítica da interpretação ou da "curadoria" do estudante é destituída de função pedagógica, constituindo-se, ao contrário, em uma ofensa inaceitável ao aluno pertencente à minoria. 


Atitude para a qual, aliás, a única resposta decente é a denúncia pública, a acusação de um crime identitário grave —racismo, transfobia, misoginia, assédio— e, naturalmente, o pedido de demissão do docente, conforme o roteiro desta semana. 


No caso, a professora que cometeu o crime hediondo de errar a identificação de gênero da estudante não é transfóbica nem racista, todo mundo sabe disso. A gravação da aula o demonstra sem sombra de dúvida. Mas que importa? 


O justiçamento dos identitários, mormente o da minoria trans, é o processo judicial mais célere do mundo. O acusador é também o juiz que julga, condena e expede a sentença, assim como é a mão pesada que se encarrega da punição. 


Do ponto de vista do identitário radical, não há arbítrio, violência ou possibilidade de erro nesse procedimento. 


Como poderia haver arbítrio se o "corpo historicamente subalternizado" está reagindo à brutalidade histórica e estrutural que contra ele se exerce? Que se dane se essa pessoa singular não praticou crime algum. Como sabia o lobo da fábula de La Fontaine, há sempre alguma boa razão para se fazer o que já se queria fazer quando se é o mais forte. 

O lobo sempre tem razão.

 

E como assim violência? "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem", recitam os que afiam as facas. Erro? Que erro? Uma pessoa trans não se engana, ainda mais quando há um coletivo ao seu redor que jura que viu o que ela viu e que, se não viu, considera ser mais do que provável que tenha ocorrido, vez que todo mudo sabe que a universidade é um lugar extremamente opressor. 


Por fim, para que correr o risco de inocentar um culpado apenas pela leviandade de querer salvar um inocente? 


Um dos lugares mais insalubres para se trabalhar hoje são as universidades. Ao menor interesse contrariado, à menor reivindicação de hierarquia pedagógica, à mera indicação de bibliografia pode corresponder uma acusação de gravíssimo crime identitário. Crime hediondo, sentença automaticamente cumprida. 


Nem Kafka previu coisa assim. 


Complacente com a sua cria, nem o espírito de corpo típico do ambiente acadêmico vem em socorro dos acusados-condenados-punidos, nem sequer para pedir que tenham um julgamento justo ou que o linchamento ocorra depois de apurados isentamente os fatos. 

O aluno deve ser acolhido, os professores que lidem com os leões. O cartaz e a pichação ficam na parede, o dedo na cara, o cerco, o centro acadêmico cúmplice, o docente tratado como pária e criminoso na casa em que trabalha há dez, 20 anos, tudo acontece sem que qualquer reação institucional se esboce. 


A minha colega teve sorte de alguém estar gravando a aula. E, mesmo assim, vários docentes se alinharam automaticamente à acusação. Na instituição, toda aquela valentia corporativa contra o bolsonarismo reduz-se ao silêncio intimidado ante a corporação identitária. 


Apesar da gravação, a militância identitária corre às ruas e às redes para fazer exatamente o que fazia o bolsonarismo: continuar a difamar a docente e a universidade e a destilar o seu ressentimento contra a instituição. 


Troque doutrinação ideológica por doutrinação patriarcal e colonialista, e ideologia de gênero por ideologia da heteronormatividade ou da cisnormatividade, e veremos o identitário radical usar a mesma matriz acusatória do bolsonarismo. E retaliar a universidade, que, no fundo, detesta, de um jeito que o bolsonarismo apenas sonhou poder fazer.

 

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada" 

 

3 comentários:

  1. Concordo plenamente com o artigo. Os argumentos são utilizados como flechas. Vivemos tempos ditatoriais. E, pior, ainda, tempo de refrãos. E cada dia temos um para compor o dicionário.
    Os golpes e contragolpes desferidos na politica, com o beneplácito e o sim do Judiciário e de Câmaras Legislativas contribuíram para criar este ambiente onde todos são culpados e parece que estão no fim do mundo.
    A mídia faz com que estes discursos sejam ainda mais proféticos. Temos a sensação que estamos fora do lugar. A exceção virou a regra. E todos devem aceitar. Ninguém pode pensar ou ter opiniões diversa. A religião deve ser banida e toda autoridade questionada. No entanto, o que todos querem é serem o centro e o foco das atenções. Tempos sombrios, onde nada pode ser discutido ou avaliado, ao contrário, temos que aceitar todas as proposições que nos são colocados. Será, até quando a ditadura continuará?

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  2. Excelente! As minorias, depois de perseguidas ou desprezadas por tanto tempo, passam a ser igualmente truculentas ou arrogantes.

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  3. Não entendo as trans,eu gostaria muito de ter nascido mulher,mas eu sou homem,infelizmente,fazer o quê,viver uma mentira seria pior.

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