quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Zeina Latif - Testando os limites da irresponsabilidade

O Globo

Efeitos colaterais de excessos fiscais geram sensação de bem-estar no início, mas depois vem o gosto amargo, até pela baixa qualidade do gasto público

Um padrão recorrente no Brasil é o descuido com a política econômica em tempos de bonança, como se as boas condições fossem permanentes e permitissem atender às muitas demandas por mais gastos e benesses. Pior, muitas vezes as medidas têm efeito duradouro ou permanente, constrangendo os orçamentos futuros.

O sistema político não ajuda, pois não há praticamente incentivos para o Congresso frear a gastança. O custo político de fazê-lo pode ser alto, enquanto o custo do erro, pela inflação teimosa e pelos juros mais altos, cai no colo do presidente de plantão.

Em meio aos bons ventos na economia, no PIB e na inflação, caímos novamente em uma armadilha de leniência fiscal.

Algum aumento dos gastos públicos este ano seria inevitável por conta do represamento artificial feito pelo governo anterior, enquanto a proposta orçamentária de 2023 era infactível — a previsão de 17,6% do PIB de despesa primária não era realista à luz da rigidez dos gastos, a maioria deles previstos na Constituição, como os da Previdência.

Por exemplo, a contenção dos gastos com a folha (caiu de 4,3% do PIB em 2018 para 3,4% em 2022), ainda que com algum mérito, criou uma situação insustentável, pela defasagem dos vencimentos de muitas categorias e pelo encolhimento do número de funcionários públicos (-40% entre 2018-21, pela Rais) a comprometer o funcionamento de alguns órgãos.

No entanto, o governo esticou demais a corda, produzindo uma alta preocupante dos gastos, especialmente em meio à queda da receita tributária como proporção do PIB, após anos excepcionais, quando a expressiva alta de preços de commodities inflava a arrecadação.

De janeiro a julho, as despesas primárias atingiram 19,1% do PIB, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), ante 18,2% em 2022. Um importante fator de pressão é o impacto do reajuste do salário mínimo sobre a Previdência e as várias políticas sociais, agora e nos próximos anos.

Não foi decisão sábia resgatar sua fórmula de reajuste pela inflação (do ano anterior) e pela variação do PIB real (de dois anos antes). Em um país com grande desafio fiscal e produtividade do trabalho quase estagnada, corre-se o risco de piorar o balanço entre inflação e desemprego, com ambos caminhando na direção indesejada.

Estivesse o salário mínimo defasado em termos reais, a decisão seria compreensível, mas não é o caso.

São muitas os anúncios de aumento de despesas e de renúncias tributárias — por vezes, por decisão do Congresso. Exemplo evidente foi o anúncio do Novo PAC, como já discutido neste espaço.

A própria elevação dos gastos contribui para estimular a economia no curto prazo. Vide os números do PIB no segundo trimestre, com crescimento do consumo do governo (+0,7% em relação ao trimestre anterior) e das famílias (+0,9%), este último beneficiado pelo aumento do salário mínimo e pelo robusto Bolsa Família (1,3% do PIB ante 0,34% no final do Lula 2).

Enquanto isso, o investimento não reage, e a culpa não é toda dos juros altos, nesse ambiente de ruídos e riscos de retrocessos. A lista tem de tudo: política discricionária de preços da Petrobras, mudanças de regras do jogo para a Eletrobras, incertezas quanto à carga tributária futura, volta da contribuição sindical etc.

Os benefícios sobre o PIB no curto prazo alimentam a crença de muitos de que o caminho está correto, como se não houvesse custos e riscos adiante. O esforço se resumiria a não assustar os investidores. Para isso, vale até discutir a antecipação de receitas do pré-sal, como se isso compensasse a gastança.

Os efeitos colaterais de excessos fiscais não se manifestam rapidamente. No início, geram sensação de bem-estar, mas depois vem o gosto amargo, inclusive pela baixa qualidade do gasto público. Os sinais começam pela inflação teimosa, pelo estímulo à demanda em um contexto de reduzida ociosidade na economia (o nível atual de utilização da capacidade instalada na indústria e nos serviços está acima do padrão) e por alimentar a desconfiança dos investidores, que pressiona o dólar.

Um quadro de descontrole, como na gestão Dilma, é improvável. Estão claros os limites para aumento da carga tributária, contabilidade criativa e, em alguma medida, leniência do Congresso em um contexto de maior concorrência na política. O quadro está mais para um Brasil que pouco aprende e perde oportunidades.

 

Um comentário: