quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Anna Virginia Balloussier - Hamas ampliou influência em uma Palestina que se sente abandonada por Ocidente

Folha de S. Paulo

Ressentimentos acumulados por décadas de guerras e privação de itens básicos catapultaram apoio de civis a grupo terrorista

Hamas nunca escondeu sua meta de aniquilar Israel. Em 1988, o grupo que estuprou, feriu, aterrorizou, sequestrou e matou centenas de pessoas nos ataques em solo israelense de 7 de outubro divulgou uma carta abertamente antissemita e avessa a acordos de paz.

Diz um de seus 36 artigos que "o Dia do Juízo não acontecerá até que os muçulmanos lutem contra os judeus (matando os judeus)". Outro rechaça "as chamadas soluções pacíficas" como "perda de tempo", pois "não há solução para a questão palestina exceto pela Jihad". O preâmbulo preconiza: "Israel existirá e continuará a existir até que o Islã o destrua, da mesma forma como destruiu outros antes dele".

Esse mesmo Hamas domina o dia a dia dos palestinos. Isso quer dizer que a maioria no território sempre pactuou com os propósitos terroristas do grupo? Não é por aí.

A certeza de que boa parte do mundo ocidental não dá a mínima para seu sofrimento, somada a ressentimentos acumulados pelo cerco imposto a Gaza, catapultou alguma simpatia pelo Hamas, acrônimo árabe para Movimento de Resistência Islâmica.

Dizem palestinos: quase ninguém liga, fora do mundo muçulmano, se as pessoas morrem por doenças banais numa Gaza sitiada, enquanto a poucos quilômetros israelenses recebem o melhor da tecnologia médica. Ou se elas têm acesso limitado a eletricidade e comida.

Isso sem falar no que veem como crimes de guerra que horrorizariam nações ocidentais se cometidos contra os seus. O novo conflito seria um celeiro deles.

A Cruz Vermelha já alertou que os hospitais em Gaza "correm risco de se transformarem em necrotérios". Com energia privada por Israel, exemplificou o diretor da entidade para o Oriente Médio, ficam em risco "recém-nascidos em incubadoras e pacientes idosos". A nação responsável pela ofensiva já anunciou que não vai interromper seu bloqueio até que o Hamas liberte todos os reféns que fez, o que inclui a suspensão no fornecimento de água para toda a população.

Na terça (17), bombas mataram centenas num desses centros de saúde de Gaza, de acordo com autoridades do Ministério da Saúde local. Tel Aviv ainda não confirmou se está por trás do bombardeio e falou em "muitos ataques aéreos e também muita desinformação espalhada pelo Hamas".

Não são só tempos extraordinários que ensejariam medidas em colisão com princípios básicos dos direitos humanos.

Relatório divulgado em julho pela Save The Children, ONG de reputação internacional, denuncia condições abjetas contra menores de idade presos por forças israelenses. A maioria detida, segundo a organização, é espancada, algemada e blindada. Há relatos de privação de sono, água e comida nos depoimentos de 228 ex-detentos mirins.

"O principal crime alegado é o lançamento de pedras, que pode acarretar uma pena de 20 anos de prisão para crianças palestinas", diz a ONG. Um adolescente de 13 anos descreve: "O soldado ameaçou me matar quando me prendeu. [...] Ele me disse que voltaria para me buscar, e todos os dias espero esse dia chegar".

No dia 10, a Unicef, braço da ONU para a infância, se disse alarmada pela situação das crianças palestinas em geral após Israel declarar guerra em retaliação aos ataques terroristas. "Antes desta violência renovada, 1,1 milhão delas já precisava de ajuda humanitária, cerca de metade da população infantil." Centenas já morreram após o início da atual guerra.

assassinato de uma jornalista da Al Jazeera que cobria uma operação militar na Cisjordânia ocupada, por um fardado, ajudou a ferver esse caldo em 2022.

Além disso, investidas militares passadas colaboraram para atiçar a animosidade interna contra os vizinhos. Em 2014, tropas israelenses mataram cerca de 1.500 civis numa incursão sobre a Faixa de Gaza. Muitas famílias perderam mais de um membro, e também o teto que as abrigava.

Na época, um homem de 57 anos disse à rede Al Jazeera que dezenas de soldados israelenses invadiram sua casa. Tentou lhes dizer, em um hebraico aperfeiçoado por mais de 30 anos como operário construindo casas em Israel, que os moradores, a maioria mulheres e crianças, eram todos civis. Contou ter sido ignorado e que, no fim, usaram alguns parentes como escudos humanos ao deixar a residência.

Situação que guarda semelhança com o que acontece em favelas acossadas por violência policial no Brasil. Ainda que não seja uma política oficial de Estado, provoca danos reais e pode levar moradores a ver milicianos e traficantes como um mal menor.

Daí a facilidade com que a complexidade da disputa regional cede lugar a um ciclo de ódio mútuo que alimenta a extrema direita em Israel e anaboliza a radicalização muçulmana. Essa corda tende a estourar do lado mais fraco. O dos civis palestinos.

O Hamas foi fundado em 1987, um ano antes da carta em que finca estacas para seu fundamentalismo islâmico. Contexto: a chamada "guerra das pedras", ou Primeira Intifada, quando palestinos se muniram como puderam contra o outro lado após um caminhão israelense atingir um carro com trabalhadores em Gaza. Quatro deles morreram.

A revolta durou seis anos, até os dois lados assinarem os primeiros acordos de paz, em 1993, que contudo não tiveram vida longa.

O Hamas surge como alternativa islâmica a grupos nacionalistas e de esquerda, até então predominantes no contraponto a Israel. Rashmi Singh, professora de relações internacionais da PUC mineira e autora de "Hamas and Suicide Terrorism", aponta ainda a extensa rede de serviços sociais que o movimento implantou na Palestina. "Sistema de saúde, rede de educação, clubes para esportes como judô, essas coisas, isso tudo é muito importante quando pensamos no Hamas."

Uma infraestrutura que traz algum resquício de normalidade para uma população submetida por Israel ao bloqueio econômico e geográfico. Denúncias de infrações a direitos humanos cometidas pelo Hamas contra a própria população acabam pesando menos, um revés para dissidentes políticos, mulheres, LGBTQIA+ e outras parcelas fragilizadas na sociedade.

O cientista político Guilherme Casarões, da FGV, lembra que a capilaridade do grupo aumentou durante a Segunda Intifada, a partir de 2000. "Diante da paralisia das negociações de paz, agravada pela morte de Yasser Arafat [líder do partido secular Fatah e maior autoridade palestina por anos], em 2004, o Hamas conseguiu oferecer uma proposta de radicalização pela via religiosa e de violência pelo terrorismo que o tornou popular, esvaziando o poder do Fatah."

Esses atores políticos extremistas acabaram vencendo as eleições legislativas de 2006. "O resultado não foi reconhecido pelo Fatah, por Israel e por diversos países. Isso resultou na tomada unilateral de Gaza pelo Hamas no ano seguinte."

As tensões com Israel continuaram a escalar nesse meio tempo, o que nutriu a sempre efetiva ideia de um inimigo maior a se combater. Aí entra também o componente de fé. "A Palestina não importa só para palestinos, mas para o mundo muçulmano. No Islã, Jerusalém é, depois de Meca e Medina, o terceiro lugar mais sagrado, onde o profeta Maomé subiu para o céu", afirma Singh, da PUC.

Esse balaio de ingredientes religiosos, sociais e políticos cria uma atmosfera propícia ao Hamas. Por isso, alguns palestinos e simpatizantes chegam a comemorar, enquanto rodam o mundo histórias de kibutzim trucidadosmulheres violentadas, crianças capturadas e até uma jovem que soube da execução da avó após seu algoz filmá-la e postar o vídeo no Facebook da vítima.

É um pouco a lógica de "eles que começaram". Resta saber como isso vai terminar.

 

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