Folha de S. Paulo
Ressentimentos acumulados por décadas de guerras e privação de itens básicos catapultaram apoio de civis a grupo terrorista
O Hamas nunca
escondeu sua meta de aniquilar Israel. Em 1988,
o grupo que estuprou, feriu, aterrorizou, sequestrou e matou centenas de
pessoas nos ataques
em solo israelense de 7 de outubro divulgou uma carta abertamente
antissemita e avessa a acordos de paz.
Diz um de seus 36 artigos que "o Dia do
Juízo não acontecerá até que os muçulmanos lutem contra os judeus (matando os
judeus)". Outro rechaça "as chamadas soluções pacíficas" como
"perda de tempo", pois "não há solução para a questão palestina exceto
pela Jihad". O preâmbulo preconiza: "Israel existirá e continuará a
existir até que o Islã o destrua, da mesma forma como destruiu outros antes
dele".
Esse mesmo Hamas domina o dia a dia dos
palestinos. Isso quer dizer que a maioria no território sempre pactuou com os
propósitos terroristas do grupo? Não é por aí.
A certeza de que boa parte do mundo ocidental
não dá a mínima para seu sofrimento, somada a ressentimentos acumulados pelo
cerco imposto a Gaza, catapultou
alguma simpatia pelo Hamas, acrônimo árabe para Movimento de Resistência
Islâmica.
Dizem palestinos: quase ninguém liga, fora do
mundo muçulmano, se as pessoas morrem por doenças banais numa
Gaza sitiada, enquanto a poucos quilômetros israelenses recebem o melhor da
tecnologia médica. Ou se elas têm acesso limitado a eletricidade e comida.
Isso sem falar no que veem como crimes de guerra que horrorizariam nações ocidentais se cometidos contra os seus. O novo conflito seria um celeiro deles.
A Cruz Vermelha já alertou que os hospitais
em Gaza "correm risco de se transformarem em necrotérios". Com
energia privada por Israel, exemplificou o diretor da entidade para o Oriente
Médio, ficam em risco "recém-nascidos em incubadoras e pacientes
idosos". A nação responsável pela ofensiva já anunciou que não vai
interromper seu bloqueio até que o Hamas liberte todos os reféns que fez, o que
inclui a suspensão no fornecimento de água para toda a população.
Na terça (17), bombas mataram centenas num
desses centros de saúde de Gaza, de acordo com autoridades do Ministério da
Saúde local. Tel Aviv ainda não confirmou se está por trás do bombardeio e
falou em "muitos ataques aéreos e também muita desinformação espalhada
pelo Hamas".
Não são só tempos extraordinários que
ensejariam medidas em colisão com princípios básicos dos direitos humanos.
Relatório divulgado em julho pela Save The
Children, ONG de reputação internacional, denuncia condições abjetas contra
menores de idade presos por forças israelenses. A maioria detida, segundo a
organização, é espancada, algemada e blindada. Há relatos de privação de sono,
água e comida nos depoimentos de 228 ex-detentos mirins.
"O principal crime alegado é o
lançamento de pedras, que pode acarretar uma pena de 20 anos de prisão para
crianças palestinas", diz a ONG. Um adolescente de 13 anos descreve:
"O soldado ameaçou me matar quando me prendeu. [...] Ele me disse que
voltaria para me buscar, e todos os dias espero esse dia chegar".
No dia 10, a Unicef, braço da ONU para a
infância, se disse alarmada pela situação das crianças palestinas em geral após
Israel declarar guerra em retaliação aos ataques terroristas. "Antes desta
violência renovada, 1,1 milhão delas já precisava de ajuda humanitária, cerca
de metade da população infantil." Centenas já morreram após o início da
atual guerra.
O assassinato
de uma jornalista da Al Jazeera que cobria uma operação militar na
Cisjordânia ocupada, por um fardado, ajudou a ferver esse caldo em 2022.
Além disso, investidas militares passadas
colaboraram para atiçar a animosidade interna contra os vizinhos. Em 2014,
tropas israelenses mataram cerca de 1.500 civis numa incursão sobre a Faixa de Gaza.
Muitas famílias perderam mais de um membro, e também o teto que as abrigava.
Na época, um homem de 57 anos disse à rede Al
Jazeera que dezenas de soldados israelenses invadiram sua casa. Tentou lhes
dizer, em um hebraico aperfeiçoado por mais de 30 anos como operário
construindo casas em Israel, que os moradores, a maioria mulheres e crianças,
eram todos civis. Contou ter sido ignorado e que, no fim, usaram alguns
parentes como escudos humanos ao deixar a residência.
Situação que guarda semelhança com o que
acontece em favelas
acossadas por violência policial no Brasil. Ainda que não seja uma política
oficial de Estado, provoca danos reais e pode levar moradores a ver milicianos
e traficantes como um mal menor.
Daí a facilidade com que a complexidade da
disputa regional cede lugar a um ciclo de
ódio mútuo que alimenta a extrema direita em Israel e anaboliza a
radicalização muçulmana. Essa corda tende a estourar do lado mais fraco. O dos
civis palestinos.
O Hamas foi fundado em 1987, um ano antes da
carta em que finca estacas para seu fundamentalismo islâmico. Contexto: a
chamada "guerra das pedras", ou Primeira Intifada, quando palestinos
se muniram como puderam contra o outro lado após um caminhão israelense atingir
um carro com trabalhadores em Gaza. Quatro deles morreram.
A revolta durou seis anos, até os dois lados
assinarem os primeiros
acordos de paz, em 1993, que contudo não tiveram vida longa.
O Hamas surge como alternativa islâmica a
grupos nacionalistas e de esquerda, até então predominantes no contraponto a
Israel. Rashmi Singh, professora de relações internacionais da PUC mineira e
autora de "Hamas and Suicide Terrorism", aponta ainda a extensa rede
de serviços sociais que o movimento implantou na Palestina. "Sistema de
saúde, rede de educação, clubes para esportes como judô, essas coisas, isso
tudo é muito importante quando pensamos no Hamas."
Uma infraestrutura que traz algum resquício
de normalidade para uma população submetida por Israel ao bloqueio econômico e
geográfico. Denúncias de infrações a direitos humanos cometidas pelo Hamas
contra a própria população acabam pesando menos, um revés para dissidentes
políticos, mulheres, LGBTQIA+ e outras parcelas fragilizadas na sociedade.
O cientista político Guilherme Casarões, da
FGV, lembra que a capilaridade do grupo aumentou durante a Segunda Intifada, a
partir de 2000. "Diante da paralisia das negociações de paz, agravada pela
morte de Yasser Arafat [líder do partido secular Fatah e maior autoridade
palestina por anos], em 2004, o Hamas conseguiu oferecer uma proposta de
radicalização pela via religiosa e de violência pelo terrorismo que o tornou
popular, esvaziando o poder do Fatah."
Esses atores políticos extremistas acabaram
vencendo as
eleições legislativas de 2006. "O resultado não foi reconhecido pelo
Fatah, por Israel e por diversos países. Isso resultou na tomada unilateral de
Gaza pelo Hamas no ano seguinte."
As tensões com Israel continuaram a escalar
nesse meio tempo, o que nutriu a sempre efetiva ideia de um inimigo maior a se
combater. Aí entra também o componente de fé. "A Palestina não importa só
para palestinos, mas para o mundo muçulmano. No Islã, Jerusalém é, depois de
Meca e Medina, o terceiro lugar mais sagrado, onde o profeta Maomé subiu para o
céu", afirma Singh, da PUC.
Esse balaio de ingredientes religiosos,
sociais e políticos cria uma atmosfera propícia ao Hamas. Por isso, alguns
palestinos e simpatizantes chegam a comemorar, enquanto rodam o mundo histórias
de kibutzim trucidados, mulheres
violentadas, crianças capturadas e até uma jovem que soube da execução da
avó após seu algoz filmá-la e postar o vídeo no Facebook da vítima.
É um pouco a lógica de "eles que
começaram". Resta saber como isso vai terminar.
Um comentário:
Excelente análise!
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