segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Bruno Carazza* - Sobre baleias e tubarões, super-ricos pobres

Valor Econômico

Livro sobre desigualdade expõe desafio da tributação dos mais ricos no Brasil

Mineiro como sou, nunca tive a sorte de ver uma baleia de verdade na minha frente. Por isso não consigo imaginar um animal que pode atingir os 30 metros de comprimento, mais de 17 vezes a altura de uma pessoa comum.

A discrepância entre as dimensões de uma baleia-azul e um ser humano é uma alegoria utilizada pelo sociólogo Marcelo Medeiros para ilustrar a diferença entre um brasileiro mediano e aqueles que ocupam o topo da cadeia alimentar da distribuição de renda em nosso país.

No recém-lançado “Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a desigualdade”, o pesquisador do Ipea e atual professor na Columbia University recorre a diversas imagens para ilustrar aquilo que, para mim, os números já demonstram com eloquência acachapante.

Segundo Medeiros, nem a comparação entre o tamanho das baleias e o de uma pessoa comum é páreo para descrever a disparidade de renda brasileira, uma vez que as pessoas pertencentes ao 1% mais rico no Brasil ganham 24 vezes mais do que um brasileiro mediano.

E neste ponto é importante deixar claro o que estatisticamente representa um “brasileiro mediano” e aqueles que estão no topo da escala remuneratória.

Todos sabemos que o Brasil é um país de extremos, mas Medeiros nos dá um tapa na cara ao demonstrar que 20% da população adulta (cerca de 30 milhões de pessoas) não possuem renda monetária alguma: são em sua maioria mulheres que executam o trabalho não remunerado de cuidarem de suas famílias, desempregados e estudantes.

E o pior: no estrato seguinte há em torno de 30% de indivíduos que vivem com menos de um salário-mínimo (R$ 1.320,00) por mês. Assim, a renda mediana da população brasileira (isto é, o nível de ganhos que separa os 50% mais pobres dos 50% mais ricos) gira em torno de R$ 14 mil por ano (ou 1.166,67 por mês).

De vez em quando eu ainda escorrego na armadilha de associar o grupo ao qual pertenço e a maioria das pessoas com as quais convivo como “classe média”. Os números apresentados por Marcelo Medeiros explicitam o quanto essa visão é errônea: no Brasil atual, uma renda de pouco mais de R$ 4 mil por mês já te coloca na porta de entrada dos 10% mais ricos do país.

Imagino que boa parte dos leitores desta coluna tenha rendimento superior a R$ 7 mil por mês brutos, ainda mais se considerados, além do salário, os pagamentos proporcionais de 13º e adicional de férias ou, para quem presta serviços ou é empresário, o pró-labore e a distribuição de lucros e dividendos. Se você se encontra neste grupo, pertence aos 5% de renda mais alta no Brasil.

Indo um passo além, o pesquisador do Ipea e da Universidade de Columbia calcula que uma renda de R$ 28 mil por mês já credencia uma pessoa a pertencer ao estrato de 1% de renda mais alta no Brasil. Este valor é menos do que ganham médicos ou advogados privados de razoável sucesso nas grandes capitais brasileiras. Também boa parte da elite dos servidores públicos federais (magistrados, promotores, advogados públicos, fiscais da Receita e técnicos do Tesouro e do Banco Central, por exemplo) faz parte desse exclusivíssimo grupo de cerca de 1,5 milhão de adultos que integram o top 1% da pirâmide de renda no Brasil.

Mas, como Medeiros não se cansa de repetir no livro, “o Brasil é extremamente desigual e a desigualdade está concentrada no topo”.

Em outro dado surpreendente de “Os Ricos e os Pobres”, para cada R$ 5 gerados anualmente no Brasil, pelo menos R$ 1 fica nas mãos da parcela dos 0,5% mais ricos. Em outras palavras, 20% da renda anual é concentrada em cerca de 750 mil adultos brasileiros. E aqui estamos falando de quem ganha pouco mais de R$ 46,5 mil por mês.

Em outra grande tirada do livro, o autor destaca que “para saber o que faz uma sociedade ser desigual é preciso entender o que faz os ricos ricos”. Segundo os dados computados por Medeiros, o 1% mais rico do país (aqueles que ganham mais de R$ 340 mil por ano) extrai boa parte de seus proventos da distribuição de lucros e dividendos (24%), ganhos de capital (9%), rendimentos financeiros (6%), heranças e meações de patrimônio em divórcios (5%). Ou seja, quase a metade da renda declarada do 1% mais abastado no Brasil advém dos rendimentos gerados por poupança passada ou por lucros e outros ganhos de capital.

É neste ponto que a agenda do governo entra em choque com os interesses do 1% mais rico. A introdução de uma nova tributação sobre fundos exclusivos e offshores e o fim da dedução de juros de capital próprio são propostas de Fernando Haddad que estão sofrendo grande resistência no Congresso Nacional. Imagina-se que gritaria ainda maior ocorrerá quando o governo tentar acabar com a isenção da tributação sobre lucros e dividendos.

Independentemente da minha condição de mineiro, algumas vezes na minha vida tive a oportunidade de conhecer e trocar ideias com algumas grandes baleias que vivem nas águas profundas do 0,5% e além da distribuição de renda no Brasil.

Mesmo que alguns dessas potências da economia nacional sejam dóceis e outros (alguns espécimes raros) admitam ser justo pagarem mais impostos em nome de uma maior igualdade de renda no Brasil, o governo não conseguirá vender o seu peixe se não apresentar projetos consistentes de aplicação desses recursos extras.

A perspectiva de ver sua riqueza sangrar para alimentar os tubarões que vivem de emendas parlamentares e de um Estado inchado não levará as baleias do 0,1% (quem recebe acima de R$ 310 mil/mês) a serem fisgadas pelo discurso da melhor distribuição de renda.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

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