O Globo
Para saber se um lugar é desenvolvido,
deve-se olhar para os canteiros: cuidar deles exige estruturar serviços
Numa rua qualquer havia muitos buracos, e
muitas pessoas tropeçavam. Os cidadãos passaram a reclamar para a prefeitura
até que um vereador teve uma ideia genial. Aprovou-se uma nova lei em que se
resolvia os problemas. Numa manhã qualquer, um encarregado de negócios da
prefeitura colocava um cartaz na parede da rua: “É proibido tropeçar.”
Esse parágrafo é, claro, uma piada. Mas a
forma como os legisladores, tecnocratas, promotores e juízes brasileiros lidam
com os muitos problemas que a sociedade brasileira enfrenta, por vezes, não é
tão diferente da piada.
Por vezes, parece haver a percepção de que, para prover serviços para a população, basta escrever num pedaço de papel que medidas devem ser cumpridas, sem necessariamente criar as condições para que elas se realizem. Nem, tampouco, calcular os custos e benefícios de cada medida.
A construção de serviços públicos não é
simples.
Se a Constituição Federal de 1988 promulgou
uma série de direitos, muitos até hoje não materializados, a provisão material
deles seria construída ao longo das próximas décadas. A carga tributária
brasileira subiria de cerca de 26% a 32% do PIB entre 1995 e 2002.
Foi no governo Fernando Henrique que boa
parte do Estado Social, sonhado pelos constituintes, tomaria forma real. Sem
dinheiro para financiá-lo, ele seria mera quimera.
Mas o dinheiro não é infinito. Há, muitas
vezes, conflitos sobre recursos escassos — e quem arbitra sobre esses direitos
é o Judiciário.
Você provavelmente já ouviu falar dos casos
mais midiáticos, como pessoas entrando na Justiça para conseguir acesso a
remédios de custo muito alto pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Nesses casos, fica a pergunta: como arbitrar
entre o direito individual e o custo de oportunidade social, já que o orçamento
é limitado? Comprando-se o remédio de alto custo, beneficia-se uma pessoa, mas
talvez deixe-se de comprar outros remédios que beneficiariam milhares de
terceiros. Qual direito prevalece?
O juiz dificilmente se faz essas perguntas,
muitos menos os cálculos.
Outro caso, menos famoso, você provavelmente
desconhece, é que o Judiciário interfere até na contagem da população oficial
dos municípios. Como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e outros
tipos de distribuições de recursos são proporcionais à população dos
municípios, as prefeituras têm incentivos para sempre usar as contagens mais
favoráveis a si.
E não é sem razão que os prefeitos fazem
isso. Um trabalho de ótima qualidade do economista Raphael Corbi, da USP, junto
a Elias Papaionnou e Paolo Surico, mostra que municípios que saltam de um
intervalo para o outro do FPM acabam tendo um belo estímulo na economia local,
gerando novos empregos.
Há, atualmente, 29 municípios cuja população
é definida por decisão judicial, segundo as notas de rodapé das tabelas do
IBGE. Há dois problemas aí. Os juízes não têm o conhecimento técnico dos
empregados do IBGE para definir a melhor contagem. E a distribuição de recursos
é um jogo em que, para alguém ser beneficiado, outros são prejudicados — o que
em economês chamamos de “jogo de soma zero”.
Uma boa notícia é que o Judiciário parece
querer inovar nessa área. O Supremo Tribunal Federal, na presidência do
ministro Luís Roberto Barroso, anunciou a criação de uma assessoria econômica
para o STF.
A ideia é que, nos casos em que as decisões
da Corte impliquem alto impacto econômico ou requeiram uma análise de
custo-benefício, a assessoria possa aconselhar os ministros. Levar ao
Judiciário pessoas com treinamento em economia e com familiaridade com
conceitos como custo de oportunidade ou externalidades pode melhorar em muito a
qualidade das decisões judiciais. E pode facilitar a arbitragem de direitos de
forma realista e responsável.
Como disse, a construção de serviços públicos
não é simples.
Outro dia meu pai me brindou com uma pílula
de sabedoria sobre economia política. Ele me disse que, para saber se um lugar
é desenvolvido, em geral basta olhar para os canteiros. Não porque a grama e as
flores em si digam algo. Mas porque, para cuidar deles, você precisa planejar
uma agenda; contratar funcionários; distribuir fundos; fazer análise de
custo-benefício; e, enfim, estruturar serviços.
E essa qualidade institucional se constrói no
longo prazo, com os vários mecanismos que já discutimos nestas páginas. Não
basta uma decisão judicial nem pendurar um cartaz exigindo que a grama cresça.
Interessante e prático.
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