sábado, 7 de outubro de 2023

Pablo Ortellado - Guerras culturais prejudicam proteção à infância

O Globo

Demonização do adversário acaba se sobrepondo ao interesse declarado de proteger a família

As eleições para o Conselho Tutelar marcaram uma nova explosão das guerras culturais em torno dos temas da família. Progressistas e conservadores entraram em intensa campanha para eleger os conselheiros responsáveis por garantir os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. A disputa aconteceu na mesma semana em que se desenvolvia a controvérsia sobre o sucesso do filme conservador “Som da liberdade”, que discute a exploração sexual infantil.

A disputa no Conselho Tutelar foi marcada pelo receio de progressistas de que conselheiros conservadores atuariam para limitar o aborto legal, seriam condescendentes com abusos sexuais no seio das famílias e ignorariam agressões homofóbicas e transfóbicas contra adolescentes. Os conservadores temiam que conselheiros progressistas fossem complacentes com a difusão da “ideologia de gênero” nas escolas e que fechassem os olhos à pedofilia, interpretada por eles como liberdade sexual.

Em vídeo postado no YouTube a propósito da eleição, o pastor Silas Malafaia pediu o voto de evangélicos e católicos para candidatos que estivessem de acordo com “nossas crenças e valores”. Atacou a campanha “cretina, bandida, inescrupulosa” dos progressistas, “promovida por esquerdopatas, ativistas gays, gente que nos odeia, artista vagabundo que debocha da fé cristã e jornalistas”.

Noutro vídeo publicado no Instagram, a propósito do filme “Som da liberdade”, a ex-deputada Manuela D’Ávila condenou o cinismo de conservadores, “que são contra os conselheiros que atuam para enfrentar a violência sexual; que são contra as escolas abordarem as temáticas relacionadas a violência sexual; essa gente que, na prática, concilia com abusadores porque não quer denunciá-los”.

De um lado, progressistas veem os conservadores como machistas, misóginos e homofóbicos que, sob o pretexto de proteger a família tradicional, buscam apenas manter os sistemas de opressão patriarcal a mulheres, gays e pessoas trans. De outro, conservadores veem os progressistas como degenerados perniciosos que, sob o pretexto de defender os direitos humanos, querem antecipar e confundir a sexualidade das crianças e destruir a família convencional.

Quem se dá ao trabalho de conhecer tanto a ação das igrejas quanto a das ONGs de direitos humanos pode apenas se chocar com a covardia dessas duas distorções. Igrejas evangélicas fazem um cuidadoso trabalho de combate à violência doméstica, enraizado nas comunidades, com efeito positivo sobre mulheres vítimas de abuso. ONGs de direitos humanos fazem importantes campanhas incentivando a tolerância e o convívio respeitoso nas escolas.

Essas duas linhas de trabalho, se bem conhecidas, seriam indistintamente louvadas por progressistas e conservadores de boa-fé e são mais representativas das ações dos dois grupos que a caricatura ridícula do pastor que encobre um estupro porque o violador faz parte da família ou do ativista de esquerda que, em palestra na escola, estimula os meninos da primeira série a pintar as unhas e usar saia.

Não quero com isso minimizar as diferenças entre os dois grupos. Seguramente conservadores e progressistas têm divergências relevantes sobre o aborto ou o casamento gay. Esses temas precisam ser discutidos e enfrentados sem temer o dissenso.

Mas nos dois grupos também há convergências significativas na oposição à violência doméstica, à pedofilia e à violência contra a população LGBTQIA+. Essa convergência é uma plataforma tão ampla que não é difícil imaginar que, noutros tempos, os dois grupos poderiam, na maior parte do tempo, empreender um trabalho cooperativo comum. Porém, às vezes, parece que a dinâmica do antagonismo político e da demonização do adversário acaba se sobrepondo ao interesse declarado de proteger a família e a infância.

 

Um comentário:

  1. Perfeito! Parabéns ao colunista, e ao blog por divulgar texto de tamanha qualidade!

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