O Globo
Demonização do adversário acaba se sobrepondo
ao interesse declarado de proteger a família
As eleições para o Conselho Tutelar marcaram
uma nova explosão das guerras culturais em torno dos temas da família.
Progressistas e conservadores entraram em intensa campanha para eleger os
conselheiros responsáveis por garantir os direitos previstos no Estatuto da
Criança e do Adolescente. A disputa aconteceu na mesma semana em que se
desenvolvia a controvérsia sobre o sucesso do filme conservador “Som da
liberdade”, que discute a exploração sexual infantil.
A disputa no Conselho Tutelar foi marcada pelo receio de progressistas de que conselheiros conservadores atuariam para limitar o aborto legal, seriam condescendentes com abusos sexuais no seio das famílias e ignorariam agressões homofóbicas e transfóbicas contra adolescentes. Os conservadores temiam que conselheiros progressistas fossem complacentes com a difusão da “ideologia de gênero” nas escolas e que fechassem os olhos à pedofilia, interpretada por eles como liberdade sexual.
Em vídeo postado no YouTube a propósito da
eleição, o pastor Silas Malafaia pediu o voto de evangélicos e católicos para
candidatos que estivessem de acordo com “nossas crenças e valores”. Atacou a
campanha “cretina, bandida, inescrupulosa” dos progressistas, “promovida por
esquerdopatas, ativistas gays, gente que nos odeia, artista vagabundo que
debocha da fé cristã e jornalistas”.
Noutro vídeo publicado no Instagram, a propósito
do filme “Som da liberdade”, a ex-deputada Manuela D’Ávila condenou o cinismo
de conservadores, “que são contra os conselheiros que atuam para enfrentar a
violência sexual; que são contra as escolas abordarem as temáticas relacionadas
a violência sexual; essa gente que, na prática, concilia com abusadores porque
não quer denunciá-los”.
De um lado, progressistas veem os
conservadores como machistas, misóginos e homofóbicos que, sob o pretexto de
proteger a família tradicional, buscam apenas manter os sistemas de opressão
patriarcal a mulheres, gays e pessoas trans. De outro, conservadores veem os
progressistas como degenerados perniciosos que, sob o pretexto de defender os
direitos humanos, querem antecipar e confundir a sexualidade das crianças e
destruir a família convencional.
Quem se dá ao trabalho de conhecer tanto a
ação das igrejas quanto a das ONGs de direitos humanos pode apenas se chocar
com a covardia dessas duas distorções. Igrejas evangélicas fazem um cuidadoso
trabalho de combate à violência doméstica, enraizado nas comunidades, com
efeito positivo sobre mulheres vítimas de abuso. ONGs de direitos humanos fazem
importantes campanhas incentivando a tolerância e o convívio respeitoso nas
escolas.
Essas duas linhas de trabalho, se bem
conhecidas, seriam indistintamente louvadas por progressistas e conservadores
de boa-fé e são mais representativas das ações dos dois grupos que a caricatura
ridícula do pastor que encobre um estupro porque o violador faz parte da
família ou do ativista de esquerda que, em palestra na escola, estimula os
meninos da primeira série a pintar as unhas e usar saia.
Não quero com isso minimizar as diferenças
entre os dois grupos. Seguramente conservadores e progressistas têm
divergências relevantes sobre o aborto ou o casamento gay. Esses temas precisam
ser discutidos e enfrentados sem temer o dissenso.
Mas nos dois grupos também há convergências
significativas na oposição à violência doméstica, à pedofilia e à violência
contra a população LGBTQIA+. Essa convergência é uma plataforma tão ampla que
não é difícil imaginar que, noutros tempos, os dois grupos poderiam, na maior
parte do tempo, empreender um trabalho cooperativo comum. Porém, às vezes,
parece que a dinâmica do antagonismo político e da demonização do adversário
acaba se sobrepondo ao interesse declarado de proteger a família e a infância.
Perfeito! Parabéns ao colunista, e ao blog por divulgar texto de tamanha qualidade!
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