Valor Econômico
Se não houver políticas eficientes em áreas como segurança pública e educação da primeira infância, o presidente corre o risco de não obter um crescimento de aprovação
A tarefa mais urgente colocada ao governo
Lula III é reconstruir o que foi desmontado pelo bolsonarismo. Não só a
democracia esteve em risco, mas as políticas públicas foram, em quase sua
totalidade, desmanteladas, causando uma piora na vida da população mais
vulnerável e problemas para o desenvolvimento sustentável do país.
O lulismo sabe como voltar ao modelo dos
programas que tiveram, no geral, bom desempenho no seu período áureo. Todavia,
há questões novas e outras que não foram equacionadas no passado que esperam
por soluções ainda não inventadas. E aqui estão as maiores fragilidades da
gestão atual.
Se Bolsonaro tivesse um plano consistente de reeleição, não teria optado pela descontinuidade da maior parte das políticas sociais criadas por Fernando Henrique Cardoso e aperfeiçoadas durante os governos petistas, especialmente quando Lula esteve no poder. Mas o bolsonarismo segue uma ideologia fechada, pouco pragmática, que se alimenta das ideias da extrema direita internacional, que se somam ainda a temáticas conservadoras locais. É uma agenda majoritariamente de guerra cultural, e não de políticas públicas, o que garante aos bolsonaristas um apoio consistente de um terço dos eleitores, mas que os impede de ter os votos da maioria do eleitorado.
Não se pode esquecer também a contribuição da
visão de mundo de Paulo Guedes para o fracasso da reeleição de Bolsonaro.
Obviamente que o ministro da Economia avançou pouco em sua agenda liberal na
economia, em parte por conta dos populismos que teve de engolir de seu chefe.
Seu maior erro, porém, estava no diagnóstico de que o receituário
social-democrata fracassara no Brasil.
Um país tão desigual como o Brasil não é
governável por uma doutrina baseada num mercadismo radical, pois não teria
apoio popular majoritário. Isso não apaga o fato de que é preciso reformular
várias camadas patrimonialistas do Estado brasileiro, desde as vinculadas a
estamentos burocráticos até aquelas ligadas a interesses econômicos
empresariais.
Sem um amplo arco de políticas garantidoras
de direitos, particularmente para as classes C, D e E, não é possível mudar o
mapa da desigualdade do país, e tampouco se consegue se manter por um longo
tempo no poder. Mas não basta ter ações governamentais voltadas aos mais
vulneráveis. É fundamental construir modelos de governança e tecnologias de
gestão capazes de alcançar com sucesso esse público.
Foi isso que fizeram FHC e Lula, aproveitando
o espírito da Constituição de 1988, uma verdadeira carta de direitos, como a
definira Ulysses Guimarães. Só que seria necessário constituir instrumentos de
políticas públicas adequados para aumentar a igualdade social no Brasil. Cabe
lembrar o cenário prévio à redemocratização: a maioria da população não tinha
acesso básico à saúde, cerca de 40% das crianças de 7 a 14 anos estavam fora da
escola no final do ano letivo, parcelas enormes da população no Norte e no
Nordeste não tinham acesso à luz elétrica, os negros não chegavam à
universidade, os mais pobres tinham enormes dificuldades de subsistência e
continuaria aqui com uma lista enorme de carências que vistas hoje nos lembram
o quanto o Brasil era uma sociedade profundamente precária e pouco civilizada.
O combate eficaz à inflação, as políticas de
universalização e manutenção dos alunos no ensino fundamental, o crescimento
impressionante das ações governamentais na atenção primária de saúde, o Luz
para Todos, a multiplicação das cisternas, o Bolsa Escola e depois o Bolsa
Família, enfim, um elenco enorme de políticas públicas foi criado por tucanos e
petistas, gerando alterações muito importantes na estrutura social brasileira.
Ignorar esses avanços ou, pior, lutar para destruir tais políticas, como fizeram
a combinação do ideário bolsonarista com o de Paulo Guedes, só poderia gerar
desastre social e derrota eleitoral.
O governo Lula III está conseguindo corrigir
os erros mais crassos do bolsonarismo. O financiamento da merenda escolar e a
distribuição dos remédios da Farmácia Popular tiveram avanços significativos, o
desmatamento está diminuindo sensivelmente, a qualidade do cadastro do Bolsa
Família - e portanto a efetividade do programa - está sendo recuperada, a
política das cisternas foi retomada de forma consistente e haveria aqui outros
vários exemplos de volta ao modelo social-democrata odiado pelos bolsonaristas -
os quais, aliás, votaram recentemente contra a extensão da Lei de Cotas na
universidade pública, mais um gol contra.
Tudo isso somado a um cenário econômico
melhor do que o do período Bolsonaro garante uma aprovação popular média ao
presidente Lula maior do que a do seu antecessor. Não obstante, tais índices
são bem menores do que o alcançado no auge do lulismo, em 2010.
O fato é que a aprovação de Lula III parece
ter uma barreira no tamanho ainda firme do bolsonarismo. Isso é verdade, mas
não explica todo o fenômeno. O aumento do apoio popular dependerá muito de se
ter mais sucesso em políticas que vão além da receita de combater os fracassos
governamentais de Bolsonaro. Há um conjunto de temas, mais antigos e mais
novos, nos quais o governo ainda não tem soluções adequadas.
Pode se começar pela área social que menos
avançou em todo o período lulista anterior: a segurança pública. Em seu
terceiro mandato, o presidente Lula por ora não apresentou um projeto
estrutural, como fez no Bolsa Família e no Luz para Todos, para combater a
violência e a criminalidade.
O debate passa sim pela criação de um
ministério específico, mas vai muito além disso. Tanto mais porque essa
temática se tornou muito mais complexa e mais urgente nos últimos anos, com o
avanço do crime organizado para várias partes do Nordeste e da Amazônia, com o
fortalecimento do modelo de milícia - que não só pratica crimes, mas ganha
dinheiro com serviços - e com a maior dificuldade de controlar e coordenar as
forças policiais estaduais, que muitas vezes não obedecem nem ao comando de
seus governadores.
A política de segurança pública pode ser um
obstáculo para um crescimento maior da aprovação presidencial. Sem produzir
soluções efetivas e inovadoras nessa área, a polarização tende a ter um peso
maior no jogo eleitoral. Junta-se a isso outras questões ainda sem uma resposta
adequada do lulismo. Os exemplos das políticas de primeira infância e da
reforma do ensino médio contêm um problema mais amplo e que ainda não foi
captado com precisão pelo governo Lula III.
No caso da política de primeira infância, ela
envolve atuar sobre as crianças de 0 a 6 anos e suas famílias. O impacto aqui é
duplo. De um lado, as meninas e meninos beneficiados por ações intersetoriais
em educação, saúde e assistência social teriam um desempenho estudantil melhor
nas idades mais avançadas, haveria menores possibilidades de se envolverem com
a criminalidade, desenvolveriam competências socioemocionais que os tornariam
mais resilientes e adaptáveis no mercado de trabalho. Isso ampliaria ganhos
futuros a tais indivíduos e à sociedade como um todo.
Mas, por outro lado, investir na primeira
infância já traz aspectos positivos no presente, especialmente favorecendo os
mais vulneráveis a cuidar bem de seus filhos (as), o que resulta em avanço no
sentimento de bem-estar e, por tabela, num apoio enorme de famílias mais pobres
ao governo que comandar este processo. Parece óbvia a centralidade dessa
questão. Entretanto, o governo Lula III ainda não sabe como lidar com ela.
O mesmo pode ser dito na política para os
mais jovens. A reforma do ensino médio evitou uma catástrofe de implementação,
contudo está bem longe de garantir a permanência e a satisfação dos estudantes
nesse modelo antigo de processo educacional. Pode ser que um maior investimento
nas escolas de tempo integral e, sobretudo, na vertente profissionalizante
consigam mudar em parte a situação atual.
De todo modo, é preciso pensar que a solução
para esse ciclo deve se casar com o acesso a profissões e à universidade,
evitando a proliferação do já gigantesco contingente da juventude que nem
estuda nem trabalha. Eis mais um caso em que o governo não tem um projeto
estratégico para resolver o problema.
Outros temas poderiam ser citados, como a
política climática, a criação de condições efetivas de desenvolvimento à
população amazônica, a garantia de direitos mínimos de cidadania a um número
cada vez maior de informalizados que desejam ser empreendedores, uma nova
política de reindustrialização que não seja a reprodução bolorenta do
varguismo. Tudo isso é fundamental para o futuro do país e pode ser fundamental
na contabilidade eleitoral de 2026, para além da força da polarização.
Só será possível ir além da reconstrução do
pacto social-democrata que alicerça o lulismo se inovações forem produzidas
naquilo que seu receituário não deu conta até hoje. Para tais questões, será
necessário ter um modelo especial de governança - isto é, na forma de
articulação dos atores - e tecnologias de gestão exitosas, como as inventadas
no Plano Real e no Bolsa Família.
A qualidade e a legitimidade política do
governo Lula III vão depender de ter gente capaz de produzir e implementar
esses novos caminhos. Do contrário, mesmo atacando a destruição bolsonarista,
corre-se o risco de uma nova eleição ainda apertada e, sobretudo, de perder a
oportunidade de legar um país significativamente melhor em 2026.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
O Brasil atingiu a maturidade política mas está no jardim de infância, não haverá desenvolvimento nos municípios sem a logística estrutural do Turismo anti -ecocídio
ResponderExcluirTexto excepcional! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar esta excelente análise.
ResponderExcluir