O Estado de S. Paulo
Quando o Brasil deixar de presidir o CS da
ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é uma campanha por todas
as crianças que vivem em área de guerra
Nas duas primeiras semanas de guerra no
Oriente Médio, 20 jornalistas foram mortos. Merecem nosso reconhecimento por
terem dado a vida fornecendo a matéria-prima para que possamos saber do que se
passa no front e tentar entender o futuro deste conflito. Temos mais perguntas
do que certezas. Creio que será assim por muito tempo. Não adianta colar nos
aparelhos de tevê, ler os principais jornais do mundo, comprar livros – tudo o
que conseguimos é uma visão parcial. Mesmo os especialistas que não vivem a realidade
cotidiana da região têm dificuldades para interpretá-la fielmente.
Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos.
No momento em que Israel se prepara para uma
invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja
ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em
mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as
pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo,
ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país.
Não creio que os exemplos anteriores possam
ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente
construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30%
das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar
numa destruição que não deixará pedra sobre pedra.
Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo
de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a
organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em
Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per
capita anual, em torno de US$ 60 mil.
Em caso de vitória de Israel e ampla
destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria
condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas
eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006.
Há dois grandes temas que precisam ser
avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças.
Quando se diz que o Hamas não representa a
Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel.
Alguns artigos do Jerusalem Post questionam
essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o
Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de
Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito
menos derrubar um governo indesejado.
Numa guerra assimétrica em que a propaganda
tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com
as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde
na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do
presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma
coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um
enfoque especial.
Para começar, há aquelas que dependem de
eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades
hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um
corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins
bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso.
Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se
encarado como suprimento bélico.
Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças
presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e
isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de
hostilidade.
Mas creio que não bastará. Crianças precisam
brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais
importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam
as crianças, que as confundiam com brinquedos.
O que é possível fazer na Palestina – na
Cisjordânia e em Gaza
– é criar alguns espaços que as crianças
possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional,
com anuência das partes.
A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos,
o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria
também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que
condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e
à luta violenta?
Quando o Brasil deixar de ter a
responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos
fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as
crianças que vivem em área de guerra.
Para ter alguma credibilidade, seria
interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que
tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de
preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem,
por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos
confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia.
Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações?
É.
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