terça-feira, 3 de outubro de 2023

Jan-Werner Mueller* - As democracias não estão “retrocedendo”

Valor Econômico

Os autoritários vêm mostrando que também podem se adaptar, aprendendo com seus próprios erros, os de seus antecedentes e os de seus pares

Ao que parece, 2023 será mais um ano funesto para a democracia. Houve vários golpes de Estado na África. A Tunísia - há muito considerada a única história de sucesso democrático da Primavera Árabe - viu a consolidação de um regime autoritário (e xenófobo). E Donald Trump parece caminhar para garantir a nomeação republicana para disputar as eleições presidenciais americanas de 2024.

A maneira como descrevemos esses acontecimentos é importante. Afinal, as palavras têm consequências. Infelizmente, parte da linguagem usada para analisar a recessão democrática global está tendo exatamente o efeito errado. O termo “retrocesso” - que vem contribuindo para uma curiosa passividade das forças pró-democracia - é um exemplo disso.

O mundo não está “recuando” em direção a alguns regimes familiares do passado, nem mesmo em direção a dinâmicas e circunstâncias que já vimos antes e podemos compreender facilmente. Há muito se acredita que, embora as democracias cometam erros, elas também podem aprender com esses erros e se ajustam conforme o caso. Mas os autoritários vêm mostrando que também podem se adaptar, aprendendo com seus próprios erros, os de seus antecedentes e os de seus pares.

Na verdade, os autocratas modernos conceberam uma nova cartilha para consolidar, exercer e manter o poder - que depende significativamente de manter algumas das armadilhas da democracia. Conforme vêm demonstrando os cientistas sociais Sergei Guriev e Daniel Treisman, os chamados “spin dictators” (ditadores marqueteiros, em tradução livre) estão muito longe dos violentos ou genocidas “fear dictators” (ditadores do medo), que dominaram o século XX. Eles evitam o uso da repressão aberta para fortalecer suas posições. Também evitam cometer violações óbvias da lei e até usam a lei para atingir seus objetivos, no que os acadêmicos chamam de “legalismo autocrático”.

Esses autocratas concentram-se em manipular a opinião pública, enfraquecendo ao mesmo tempo as normas e instituições democráticas das quais eles afirmam derivar sua legitimidade. Por exemplo, em vez de se envolverem na repressão contundente e antiquada, eles podem usar as tecnologias modernas de vigilância, como softwares espiões, para identificar possíveis dissidentes. E em vez de empregar os serviços de segurança para bater na porta dos dissidentes, tarde da noite, eles podem enviar as autoridades tributárias para encontrar falhas em uma ONG ou um jornal.

Os ditadores marqueteiros também fabricam “fatos” consumados. Por exemplo, os populistas de extrema-direita na Polônia e Hungria conseguiram enganar a União Europeia durante tempo suficiente para reformular as instituições nacionais e mudar o quadro de servidores públicos para consolidar seus próprios governos. Desfazer esses danos não é impossível, mas fica mais difícil a cada dia.

Se assumirmos que as democracias estão em um caminho linear, praticamente inescapável, de retorno ao autoritarismo ao velho estilo, não conseguiremos refletir adequadamente sobre os caminhos possíveis para sair do novo autoritarismo

Mas esses autocratas de hoje não são mágicos políticos capazes de enganar todo mundo o tempo todo. Eles também cometem muitos erros que podem por em perigo seu governo, e mantêm de reserva a violência e outros meios de repressão escancarada. Vladimir Putin não teve problema em abandonar toda a pretensa legalidade ou tolerância à dissidência, depois que ordenou a invasão da Ucrânia.

Muitos aspirantes a déspota têm um plano que inclui elementos copiados de outros. Depois que o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán mostrou como enganar a União Europeia e ganhar tempo enquanto consolidava sua autocracia, outros poderiam facilmente imitá-lo - conforme fez o partido no poder na Polônia.

“Retroceder” também sugere que a atual recessão democrática é um processo linear.

Como observam Seán Hanley e Licia Cianetti, isso “corre o risco de reproduzir, ao contrário, as restrições intelectuais do paradigma da transição da década de 90”. Nos dois casos, houve a suposição de que todos seguem inexoravelmente o mesmo caminho. Mas o otimismo injustificado (todos procuram uma democracia mais robusta) deu lugar ao pessimismo injustificado (a democracia de todos está sendo “corroída”).

Na verdade, o mundo hoje não experimenta a mudança abrangente, e muito menos inevitável, em direção à autocracia, tal como não experimenta o resgate conclusivo da democracia. O fato de os populistas autoritários serem às vezes alijados do poder pelo voto, torna isso flagrantemente claro.

É possível ver essa dinâmica flutuante em funcionamento na República Checa e na Eslováquia. Na última, após um período de resistência liberal ao autoritarismo e à corrupção, o arquipopulista e pró-Putin Roberto Fico regressou ao poder nas eleições antecipadas. Talvez devêssemos substituir o termo “retrocesso” por “adernar”, proposto por Hanley e Cianetti para capturar uma trajetória errática muitas vezes imprevisível.

Se assumirmos que as democracias estão em um caminho linear, praticamente inescapável, de retorno ao autoritarismo ao velho estilo, não conseguiremos refletir adequadamente sobre os caminhos possíveis para sair do novo autoritarismo. Antes de eleições com incumbentes autoritários nas cédulas - como na Hungria no ano passado ou a Turquia este ano -, os observadores liberais são geralmente claros sobre o resultado desejado; mas eles raramente oferecem um plano para o dia seguinte à votação.

Poderíamos atribuir essa falha ao fatalismo: ninguém realmente espera que o poder mude de mãos. Mas isso também pode ser um sinal de preguiça intelectual, com os observadores assumindo que se pode simplesmente aplicar lições prontas de transições anteriores - demonstrando assim pouca consideração pelos novos elementos dos sistemas autocráticos atuais. Aqueles que têm interesse em Estados mafiosos e cleptocráticos, e em forças armadas corruptas, podem muito bem estar relutantes em sentar à mesa para negociar.

Essas generalizações - como as baseadas em experiências passadas - podem ser enganosas, mas esse é o ponto. Para preservar, restabelecer ou promover a democracia globalmente, precisamos de análises cuidadosas de casos individuais, e não apenas de suposições amplas sobre as “tendências globais”. (Tradução de Mário Zamarian).

*Jan-Werner Mueller é professor de política na Universidade Princeton e autor de Democracy Rules (Farrar, Straus and Giroux, 2021; Allen Lane, 2021). Project Syndicate, 2023.

 

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