Valor Econômico
O Brasil sofre danos mitigados, graças ao
quase desaparecimento da dívida pública em moeda estrangeira e às reservas
cambiais acumuladas nos governos Lula
No romance “Uma Princesa em Berlim”, o
escritor Arthur Solmssen nos atormenta gentilmente com a estória de Peter
Ellis, um jovem americano da Filadélfia, motorista de ambulância na Frente
Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial. Em Paris, Peter encontra um
ex-oficial alemão, Christopher Keith, cuja vida ele salvou em Verdun. Christoph
é descendente de uma família de banqueiros de Berlim. A convite deles, Peter
concorda em ir a Berlim, para estudar pintura.
Deambulando pelas ruas e Cafés da Cidade Luz,
Keith lança um convite para Peter:
“Venha para a Alemanha”, disse Keith.
“Para a Alemanha?”
“Meu amigo, na Alemanha temos inflação. Sabe
o que isso significa? O dinheiro vale cada vez menos, quero dizer, o nosso
marco alemão, ele compra cada vez menos a cada dia. Sabe o que valia um dólar
americano hoje - quero dizer, hoje à tarde, quando os bancos fecharam? Cerca de
duzentas marcos - então um de nossos marcos é metade de um centavo americano! E
está piorando, eles ainda não decidiram quanto a Alemanha vai pagar em
reparações aos Aliados, a cada dia a marca cai mais, e para esse cheque você
pode viver na Alemanha - bem, muito confortavelmente”.
A Argentina estrebucha nas garras de mais uma crise monetária, entre tantas que sofreu no século XX e aurora do XXI
O cinema nos ofereceu uma narrativa dramática
de Ingmar Bergman. Na abertura do clássico “O Ovo da Serpente”, Bergman
apresenta as angústias de seu personagem alemão aturdido com a recontagem,
minuto a minuto, dos marcos necessários para comprar um maço de cigarros. Entre
o ingresso no bar e a chegada ao balcão, o infeliz soube que preço subiu.
Esmagada pelas reparações de guerra que lhe
foram impostas pelo Tratado de Versalhes, a economia alemã sucumbiu à
impossibilidade de gerar as divisas necessárias para servir o que lhe fora
imposto. A fuga sistemática do marco para o dólar e a libra, as moedas-reserva
do Gold Exchange Standard, disparou a hiperinflação e a necessidade de emissões
monetárias do Reichsbank para “cobrir” a fuga desesperada da moeda nacional.
Na Argentina de nossos dias, os preços não
alcançaram a velocidade da hiperinflação alemã, mas já caminham céleres para
desatar um outro processo inflacionário de proporções weimarianas.
Às véspera do jogo Boca Juniors vs Palmeiras,
a polícia argentina advertiu os torcedores brasileiros: serão presos os que
cometerem o desrespeito de queimar pesos nas arquibancadas. Um amigo palestrino
protestou: deveriam advertir os ricaços argentinos. Ao escapar para o dólar,
eles queimam pesos todos os dias, várias vezes por dia. (Felizmente, nuestros
hermanos devem aplacar suas inquietações diante dos rosnados del perro muerto
que recomenda a Javier Milei dolarizar a economia).
Os especialistas deploraram a derrocada do
peso argentino. Essas testemunhas de acusação, diga-se, são as mesmas que
recomendaram um ajuste duro e implacável para a economia brasileira depois das
eleições de 2014. Os porta-vozes dos mercados diziam que era preciso recuperar
a confiança.
Resumindo: se o indigente emergente arrumar a
casa e seguir os cânones do tripé macroeconômico, os investidores ganham
confiança e inundam o menino bem-comportado de investimentos diretos e compram
confiantes títulos de dívida públicos e privados. Como bem sabem os
brasileiros, a confiança enfunou as velas e a economia foi de vento em popa na
Era Temer-Meirelles.
A Argentina estrebucha nas garras de mais uma
crise monetária. É preciso acentuar a expressão “mais uma”. Mais uma, entre as
tantas que acometeram a economia dos hermanos no século XX e na aurora do
século XXI.
O leitor atento certamente guarda na memória
os prodígios de Martínez de Hoz nos anos 1970. Empolgado com a abundância de
petrodólares, o “Mago de Hoz” promoveu a valorização do peso. As duas
experiências de valorização cambial e endividamento externo naufragaram no
maremoto da crise da dívida dos anos 1980.
Nascida dos escombros da crise da dívida, a
conversibilidade de Domingo Cavallo, uma velharia colonial, foi reinventada no
início dos anos 1990 para tirar a Argentina da hiperinflação. Um peso valia um dólar.
A euforia dos primeiros anos de plata dulce desapareceu com a sucessão de
crises financeiras: primeiro o México, logo depois a Ásia, culminando na
desvalorização brasileira de 1999, o começo do fim.
Nos últimos 40 anos de abertura das contas de
capital, as crises se multiplicaram nas chamadas economias emergentes. Do
México à Argentina, passando pela Ásia e pela Rússia - sem se esquecer do
Brasil -, as economias balançaram, açoitadas por crises cambiais e financeiras.
A experiência das globalizações financeiras -
aquela das três derradeiras décadas do século XIX, assim como a dos nossos
tempos, a era do Lobo de Wall Street - demonstra que os humores dos mercados
financeiros globalizados, em sua insaciável voracidade, impõem suas razões às
políticas monetárias e fiscal dos países de moeda inconversível que abrem suas
contas de capital, surfam nos ciclos de crédito externo e tornam-se devedores
líquidos em moeda estrangeira.
Foram tão persistentes as lições da
“realidade” que nem mesmo os defensores da abertura financeira resistiram à
precariedade de suas sabedorias. No início da primeira década do terceiro
milênio, os relatórios do FMI e do BIS já cuidavam de alertar os emergentes
para os riscos inerentes aos ciclos de crédito e endividamento externo e sua
procissão de incidentes cambiais, monetários e fiscais.
Nas economias de moeda não conversível, como
o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir
valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de
taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades
monetárias do país de “moeda fraca” - com “ponto de compra” imprevisível - são
tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso
do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo
financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a
desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.
O Brasil sofre danos mitigados com as marchas
e contramarchas do câmbio, graças ao quase desaparecimento da dívida pública em
moeda estrangeira e às reservas cambiais acumuladas nos governos Lula. Heranças
malditas da esquerdalha.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor emérito do Instituto de Economia da Unicamp
Simplesmente perfeito!
ResponderExcluirGenial.
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