Folha de S. Paulo
Ou haverá a tão sonhada solução de dois
Estados ou genocídio mútuo
Começo com uma obviedade singela: seja qual
for sua causa, ela não justifica que você saia
pelas ruas executando idosos, estuprando mulheres e raptando
jovens. Disso, chegamos a uma conclusão que deveria servir de mínimo
denominador comum moral: o Hamas é um grupo ilegítimo, terrorista, e deve
deixar de existir. A resposta militar a ele é justificada. Anos no poder em
Gaza em nada reduziram seu extremismo e seu desejo de varrer Israel do mapa.
Pelo contrário, seu braço armado se tornou ainda mais ativo.
É um grupo que, ademais, faz uso notório de escudos humanos, colocando suas bases ao lado de escolas e hospitais. Isso levou Israel, no passado, a avisar moradores de áreas residenciais de Gaza antes de um bombardeio, dando-os alguns minutos para fugir. Fica a pergunta: teria o Hamas atitude semelhante se o Exército de Israel usasse escudos humanos? Não precisa responder.
Esse julgamento independe da opinião sobre a
justiça ou injustiça da causa palestina. Tomemos um exemplo de outro contexto:
imagine se a Ucrânia, em
vez de responder à invasão atacando alvos militares russos, fizesse incursões
para além da fronteira assassinando, estuprando e raptando civis? A própria
causa ucraniana —em essência justa— ficaria comprometida.
Enquanto escrevo, o Ministro da Defesa de
Israel anuncia o
cerco total a Gaza. "Nem eletricidade, nem comida, nem
água, nem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais humanos e agindo
de acordo." Ou seja, a reação ao terrorismo será o crime de guerra (e não
seria o primeiro). Não é preciso ser nenhum gênio político para prever que isso
irá aumentar o ódio palestino contra Israel e, portanto, fortalecer o
extremismo e aumentar a hostilidade do mundo árabe.
Então por que o governo Netanyahu aposta na
revanche indiscriminada? Para aumentar seu apoio interno. Essa é a lógica que
permeia toda escalada de violência e que resulta em guerras e genocídios: já
que o outro lado quer me destruir, eu preciso tentar destruí-lo também. Minha
segurança depende de sua aniquilação. E não é fácil escapar dela, já que
qualquer um que traga alguma nuance será acusado de fraco ou mesmo traidor pela
ala mais radical.
A chance está no povo entender que essa
engrenagem não lhe beneficia. Por meses antes deste ataque do Hamas, as
principais notícias vindas de Israel eram da política interna, polarizada entre
democratas e uma direita populista, que ameaça a
independência da Suprema Corte. (Qualquer semelhança com outros
países não é mera coincidência.)
Agora, com os
ataques, a população se une: solidariedade no cuidado e coragem
para se alistar substituem a briga. Ao mesmo tempo, é um momento de decisão: o
governo Netanyahu dividiu o país, enfraquecendo-o perante os inimigos; tem sido
um obstáculo a qualquer acordo pragmático com a Palestina; deu mostra de incompetência
ao ser pego completamente desprevenido nesse ataque terrorista; e agora toma
medidas que apenas aumentarão o ódio árabe e a probabilidade de novos ataques.
Mesmo sem equivalência entre seu governo e o Hamas, fica claro que ele é parte
do problema. Mas será que o povo israelense, sob a ameaça do Hamas, verá as
coisas assim?
Quanto mais distante parece, mais necessária
fica a tão sonhada solução de dois Estados. Ela aguarda líderes dotados de
coragem, inteligência e grandeza moral para tornar o aparentemente impossível
em um futuro vislumbrável pela população. É isso ou já ir inventando
justificativas para a próxima leva de assassinatos de crianças, seja de que
lado for.
Muita tristeza...
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