O Estado de S. Paulo
A desilusão palestina levou a um niilismo
cuja expressão mais violenta é o terrorismo
Israel está prestes a iniciar uma longa e
sangrenta invasão de Gaza. E a criar novos fatos consumados nesse conflito de
75 anos. O cenário leva a duas perguntas. A sociedade israelense está disposta
a pagar o preço? O que ocupará o lugar do Hamas?
Os israelenses têm chamado o ataque do Hamas de “11 de Setembro de Israel”. A analogia é desconcertante. Os americanos fracassaram miseravelmente no Afeganistão. Duas décadas depois da invasão, que custou a vida de 2.402 soldados americanos e US$ 2,3 trilhões, o Taleban voltou ao poder com mais domínio do território e assertividade moral do que antes.
Cobri a última invasão por terra da Faixa de
Gaza, em 2014. Ela durou sete semanas e matou 2.200 palestinos e 66 soldados
israelenses. Aniquilar o Hamas, como promete Israel, custará muito mais que
isso.
Israel ocupou e colonizou a Faixa de Gaza
entre 1967 e 2005, quando o então primeiro-ministro Ariel Sharon a entregou à
Autoridade Nacional Palestina (ANP). A decisão gerou grandes tensões internas.
Os colonos judeus retirados do território foram acomodados em hotéis de
Jerusalém enquanto eram realocados em Israel e na Cisjordânia.
Entrevistei um deles em 2006, depois que
Sharon sofrera um derrame cerebral do qual não se recuperaria. Era um judeu
ortodoxo americano. Ele me disse que o derrame tinha sido um castigo divino,
com a seguinte lição: ninguém mexe no mapa que Deus desenhou.
O desejo declarado de Sharon era que a Faixa
de Gaza sob administração palestina se transformasse na Hong Kong do
Mediterrâneo. Em 2006, a ANP realizou eleições. O Hamas venceu, elegendo 74 das
132 cadeiras do Parlamento.
HAMASTÃO. Os EUA e a União Europeia ameaçaram
cortar a ajuda financeira se o Hamas assumisse o governo. O Fatah, grupo rival
moderado, continuou governando Gaza e a parte da Cisjordânia sob administração
palestina, chamada de áreas A e B, que cobrem 40% do território.
No ano seguinte, o Hamas expulsou à força o
Fatah e assumiu o poder na Faixa de Gaza. Ao entrar no território, fui saudado
com um sorriso por um guarda de fronteira do novo governo, enquanto minha mala
era revistada em busca de bebidas alcoólicas, a partir de então proibida no
território: “Bem-vindo ao Hamastão”.
Um funcionário me levou para conhecer as
prisões onde o Fatah castigava integrantes do Hamas. Entrei e ele fechou a
porta. Não havia entrada de ar nem de luz. A sensação era de ter sido enterrado
vivo. O Hamas passou a dispensar esse tratamento, ou pior, a quem o
contrariasse.
Os moradores da Faixa de Gaza viviam sob uma
tripla pressão: do Hamas e dos consequentes bloqueios de Israel e Egito. Os
militares egípcios reassumiram o poder depois de um golpe contra o governo
democraticamente eleito da Irmandade Muçulmana, em 2012, e voltaram a
reprimi-la. O Hamas foi criado em 1987 por inspiração e com ajuda da Irmandade.
A vitória do Hamas nas eleições de 2006 foi
mais um dos recorrentes erros de cálculo dos árabes, que incluem a rejeição da
Partilha de 1948 e as guerras de 1967 e 1973. Todos resultaram na expansão
territorial de Israel. A vitória do Hamas foi motivada pela identificação
religiosa, pela corrupção e acomodação do Fatah e pela desilusão com a
perspectiva de criação de um Estado palestino.
A última chance de solução negociada foi
desperdiçada em 2000. Os à época líder palestino Yasser Arafat e
primeiro-ministro Ehud Barak chegaram muito perto de acordo territorial. Mas
não sobre o pedido palestino de fim das escavações arqueológicas nas fundações
do Templo de Herodes, destruído pelos romanos no ano 70, que podem levar a
mesquita Al-Aqsa a desmoronar.
COLONIZAÇÃO. O então líder da oposição Ariel
Sharon aproveitou o impasse para passear pelo complexo da mesquita,
desencadeando a Segunda Intifada (levante palestino) e a convocação de
eleições, que ele venceu. Desde então, Israel tem ampliado a colonização
judaica da Cisjordânia, tornando inviável um Estado palestino.
A desilusão levou a um niilismo crônico, cuja
expressão mais violenta e autodestrutiva é o terrorismo. A interpretação do
Islã pelo Hamas torna o jihadismo a única saída atraente: o “martírio”, a morte
na luta contra o inimigo, como ponte para o “paraíso”.
O presidente da ANP e líder do Fatah, Mahmoud
Abbas, levou oito dias para condenar as atrocidades do Hamas, só depois de uma
conversa com o secretário de Estado americano, Antony Blinken.
A explosão no Hospital Batista Al-Ahli, aparentemente
causada por um foguete avariado da Jihad Islâmica, mas atribuída pelos árabes a
um míssil israelense, levou Abbas, o rei Abdullah II da Jordânia e o ditador
egípcio Abdel-Fattah elSissi a cancelar a cúpula com o presidente Joe Biden.
Mais uma vitória da violência e da desinformação.
Segundo o ministro da Defesa Yoav Gallant,
depois de neutralizar o Hamas, Israel pretende se isolar hermeticamente da
Faixa de Gaza, bloqueando toda a passagem de trabalhadores palestinos e de
qualquer tipo de suprimento. Significa deixar toda a responsabilidade com o
Egito, antigo administrador do território. E fechar mais uma porta para um
Estado palestino, que pressupunha uma ligação por terra entre a Faixa de Gaza e
a Cisjordânia, como a que havia entre Berlim e a Alemanha Ocidental.
Bem informativo!
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