Correio Braziliense
O ministro da Justiça anunciou um
investimento de R$ 900 milhões no novo programa nacional de combate a
organizações criminosas. Não tem a menor chance de sucesso
O filme Invasor Americano (Where to Invade
Next), lançado nos EUA em 2016, tendo o documentarista norte-americano Michel
Moore como roteirista, diretor e protagonista, sete anos depois de lançado
ainda tem seu valor. O autor de Tiros em Columbine faz uma sátira sobre o
militarismo americano e, ao mesmo tempo, uma dissimulada apologia do que
poderíamos chamar de “bom americanismo”.
No documentário, Moore supostamente recebe do Pentágono uma missão solitária, depois de uma reunião convocada pelo Departamento de Defesa dos EUA, na qual os generais das Forças Armadas norte-americanas, humildemente, reconhecem que todas as guerras nas quais os EUA se envolveram depois da Segunda Guerra Mundial resultaram num fiasco.
Moore, então, parte para a Europa e o Norte
da África, para saquear o que alguns países poderiam ter de bom para oferecer
aos Estados Unidos. Visita a Itália e se impressiona com a aparência sorridente
e bronzeada dos nativos, que atribui à legislação trabalhista. Na França, se
espanta com a qualidade e a sofisticação da alimentação escolar; na Finlândia,
com a educação básica; na Eslovênia, a universidade gratuita; na Tunísia, a
luta vitoriosa das mulheres por seus direitos; na Alemanha, o combate ao antissemitismo
e o sistema público de saúde; na Islândia, a conquista do poder pelas mulheres.
Mas o que nos interessa aqui são Portugal e Noruega.
Em Portugal, ele pergunta a dois policiais o
que eles fazem quando encontram um negro com papelotes de cocaína. Os agentes
da lei respondem-lhe: “Nada, é um direito dele”. A legislação portuguesa
descriminalizou o consumo daqueles que portarem no máximo 10 doses de uma
determinada substância ilícita. O que fez a diferença foi a mudança em relação
aos viciados: deixaram de ser tratados como criminosos, recebem programas de
assistência, de substituição de heroína por metadona, foram incluídos no
sistema de saúde para tratarem suas doenças.
Resultado: apesar de o consumo global de
drogas não ter diminuído, o de heroína e cocaína passou de 1% da população
portuguesa para 0,3%; as contaminações por HIV entre os consumidores caíram
pela metade (de 104 novos casos por milhão para 4,2 em 2015), e a população
carcerária por motivos relacionados às drogas caiu de 75% a 45%, segundo dados
da Agência Piaget para o Desenvolvimento (Apdes).
Na Noruega, o espanto de Moore foi com as
prisões, que comparou a colônias de férias. Naquele país, a reabilitação é mais
importante do que a punição, e os índices de homicídios é um dos mais baixos do
planeta. E onde está o “americanismo”? Essas políticas foram inspiradas na
Declaração de Independência e na Constituição dos Estados Unidos, a moral da
história contada por Moore.
Mudança de paradigmas
E aqui entra o ministro da Justiça, Flávio
Dino, que, nesta segunda-feira, anunciou um investimento de R$ 900 milhões no
novo programa nacional de combate a organizações criminosas. A iniciativa
envolverá a participação da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. O
programa retoma a estruturação do Sistema Nacional de Segurança Pública, criado
na gestão do ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, de quem Flávio
Dino herdou um fundo bilionário, não gasto no governo de Jair Bolsonaro.
Obviamente, a política de segurança pública do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva não é a do “bandido bom é bandido morto”, que parece vigorar no Rio de
Janeiro, em São Paulo e na Bahia.
É uma política que procura integrar as forças
de segurança pública dos entes federados, recorrer à inteligência contra o
crime organizado e respeitar os direitos humanos, porém, sinceramente, creio
que não tem a menor chance de reverter o cenário de expansão do tráfico de
drogas e da ocupação territorial de grandes áreas das cidades brasileiras pelo
crime organizado.
Uma velha máxima gerencial diz que quando
algo dá errado, se as mesmas coisas forem feitas, tudo continuará dando errado.
Autora do polêmico livro Introdução crítica à criminologia brasileira (Revan),
a professora Vera Malaguti Batista, da Faculdade de Direito da Uerj, resumiu o
que sempre acontece quando os governos resolvem dar uma resposta à
criminalidade: “Se a política não tem como reduzir a violência que o modelo
econômico produz, ela precisa mais do que de um discurso, precisa de um
espetáculo”.
O programa de segurança pública lançado por
Flávio Dino tem cinco eixos: integração institucional e informacional; aumento
da eficiência dos órgãos policiais; portos, aeroportos, fronteiras e divisas;
aumento da eficiência do sistema de Justiça criminal; e cooperação entre os
entes federados. De acordo com o ministério, o objetivo é enfrentar “problemas
estruturais como vulnerabilidade de fronteiras e divisas, transnacionalidade do
crime, deficiência na recuperação de ativos, baixa integração e deficiência
estrutural das polícias”. No plano emergencial, reforçar o sistema de segurança
da Bahia e do Rio de Janeiro com recursos, equipamentos e homens.
O novo plano não tem chance de dar certo
enquanto não houver um duro combate à “banda podre” da polícia (não existe
crime organizado sem a participação de agentes do Estado e conivência dos
políticos) e uma mudança radical da legislação e, aí sim, da opinião
majoritária da sociedade em relação à política de combate às drogas.
Igualmente, mudança de mentalidade do Estado e da sociedade quanto à eficácia
do nosso sistema prisional, que se transformou em escola do crime e “call
center” do tráfico de drogas. “A cadeia, em si mesma, é uma monstruosidade como
método penal”, bradou certa vez o mestre Evandro Lins e Silva.
Falou e disse.
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