Correio Braziliense
Castro fez um pacto perverso com as policias
civil e militar e aboliu a Secretaria de Segurança Pública, sem a qual é
impossível coordenar a ação do governo nessa área
A história trágica do Doutor Fausto (1604) é
uma peça teatral de autoria de Christopher “Kit” Marlowe, um dramaturgo inglês
que fez muito sucesso nos reinados de Elizabeth I (1558-1603) e James I
(1603-1625), no período de surgimento de comédias e tragédias psicológicas e
sobrenaturais. Com base numa lenda alemã sobre um alquimista da Idade Média, o
Fausto de Marlowe era um acadêmico altamente respeitado, cuja sede de
conhecimentos o levou um pacto mortal com Mefistófeles, após ser corrompido
pelo poder. Quando percebeu que atraíra para si um grande mal, já era tarde
demais.
A temática do pacto diabólico entre Fausto e Mefistófeles foi retomada pelo alemão Wolfgang von Goethe entre 1808 e 1812 na cidade de Weimar, na qual protagonizava a efervescência do classicismo, ao lado de seu amigo Friedrich von Schiller. Ambos retomaram aos clássicos gregos e rejeitaram a ideia da perfeição estética, em favor do equilíbrio entre inspiração, conteúdo e forma. Graças à insistência de seu amigo, Goethe revisitou a lenda de Fausto e Mefistófeles, dando-lhe a profundidade que tornou sua dramaturgia um clássico da literatura universal.
Sua obra começa no Céu, onde Mefistófeles, o
Diabo, medita sobre a humanidade e aposta com Deus que é capaz de fazer com que
um de seus súditos favoritos, Fausto, aventure-se pelo caminho do mal e, assim,
conquiste sua alma. Deus acredita que Fausto se manterá fiel e seja capaz de
corrigir os próprios erros. Cada vez mais ganancioso, porém, Fausto recebe um
castigo dos deuses e fica cego. Dominado pela culpa, ele ganha consciência dos
seus atos e deseja que aquele momento de clareza dure para sempre. Assim, o
pacto é quebrado e o protagonista morre.
Mefistófeles tenta levar a alma dele para o
Inferno, mas é interrompido pelo aparecimento de um coro de anjos que carregam
Fausto até ao Paraíso. Seu arrependimento valeu a pena e possibilitou a
redenção divina. Nesta crise de segurança pública criada pela milícia carioca
no Zona Oeste do Rio, território controlado pelo crime organizado, o governador
fluminense Claudio Castro (PL) encarna a figura de Fausto. Santista, mudou-se
ainda criança para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e fez carreira
como músico, compositor e cantor da Renovação Carismática Católica, ligada à
Arquidiocese do Rio de Janeiro. Ex-vereador, era o vice do governador Wilson
Witzel, que foi cassado. Assumiu o governo interinamente em 2020 e no ano
seguinte foi efetivado. Foi reeleito em 2022, com 60% dos votos, no primeiro
turno.
Tudo misturado
Aliado ao presidente Jair Bolsonaro, Castro
fez um pacto perverso com as policias civil e militar e aboliu a Secretaria de
Segurança Pública, sem a qual é impossível coordenar a ação do governo nessa
área. No pacote, veio o acordo tácito de convivência com as milícias do Rio de
Janeiro, que controlam toda a região da Zona Oeste e boa parte da Baixada
Fluminense, e apoiaram sua reeleição. Formada por ex-policiais e policiais
corruptos, em algumas regiões as milícias atuam em conluio com o tráfico de
drogas e, em outras, substituem os traficantes nesse mister. Hoje, controlam
redutos eleitorais decisivos para a política fluminense. Não existe crime
organizado sem participação de agentes públicos, no Executivo, no Legislativo e
no Judiciário.
O governo de Cláudio Castro é marcado por
chacinas policiais, como as do Jacarezinho, da Vila Cruzeiro e do Complexo do
Alemão, para citar as mais sangrentas. Quase sempre ocorrem após ajustes de
contas entre milicianos e traficantes. Em números, a gravidade da situação na
Zona Oeste do Rio de Janeiro é flagrante: de janeiro a outubro deste ano, foram
241 mortos em homicídios (129,5% sobre os 105 do mesmo período de 2022); 13
chacinas com 47 mortos (291,6% a mais que os 12 em 4 massacres no ano anterior);
e 728 tiroteios (55,88% a mais que os 467 do ano passado). No mesmo período, a
Zona Sul, a mais rica e turística, o município, registrou, no mesmo período: 6
mortos em homicídio (o dobro do ano anterior); nenhuma chacina, como em 2022; e
47 tiroteios (queda de 8,51% sobre os 51 de 2022).
Na segunda-feira, a Zona Oeste foi palco de
incêndios criminosos de mais 30 ônibus, que deixaram em colapso o sistema de
transportes da região, uma represália da milícia à morte de Matheus da Silva
Rezende, em troca de tiros com a Polícia Civil. Conhecido como Faustão ou
Teteu, ele era sobrinho de Zinho, chefe de uma das principais milícias da
região. O governador parabenizou a ação dos policiais, mas não imaginava que
perderia o controle da situação.
Não há mais distinção entre milícia e tráfico
de drogas no Rio de Janeiro, pois ambos adotam o mesmo conceito de
“territorialização” e praticam os mesmos crimes. O Comando Vermelho (CV) e as
milícias se aliaram para controlar as comunidades da Zona Oeste e Baixada
Fluminense, nas quais exploram a venda de drogas, gás de botijão, acesso à
internet, transporte por van e outros serviços.
Não existe um solução fácil para o problema, embora a situação exija medidas imediatas. Apesar de descontrole da situação, em conversa com o ministro da Justiça, Fábio Dino, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva descartou uma intervenção federal. A opção até agora foi reforçar a presença da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional no trabalho de inteligência e controle das estradas, portos, aeroportos e divisas do estado. Na verdade, é impossível resolver o problema de segurança no Rio de Janeiro sem mudanças na política antidrogas e um grande expurgo na Polícia Civil e na Polícia Militar.
Verdade.
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