Correio Braziliense
"A bipolaridade da política argentina,
entre peronistas (centro-esquerda) e liberais (centro-direita), pela primeira
vez, desde a redemocratização, em 1983, pode ser quebrada"
"Basta de carreras, se acabó la timba/
Un final reñido, yo no vuelvo a ver/ Pero si algún pingo llega a ser fija el
domingo/ Yo me juego entero, ¿qué le voy a hacer?/ Por una cabeza (por una
cabeza)/ Todas las locuras (todas las locuras)". O famoso tango de Carlos
Gardel (música) e Alfredo La Pera (letra), cujo nome intitula a coluna, é um
retrato das paixões políticas na Argentina. Composto em 1935, a música fala de apostador
compulsivo em corridas de cavalo que compara seu vício à atração pelas
mulheres.
"Chega de corridas, acabaram as apostas/
Não voltarei a ver um final disputado/ Mas se algum cavalo se tornar favorito
no domingo/ Jogo tudo que tenho, eu vou fazer o quê? / Por uma cabeça (por uma
cabeça) / Todas as loucuras (todas as loucuras)" — é a tradução de uma
eleição presidencial eletrizante, que está sendo acompanhada por toda a América
Latina e que terá repercussões muito importantes para o Brasil.
Nas primárias eleitorais, os três candidatos mais bem colocados mostraram que a eleição pode ser decidida por uma margem muito próxima, cabeça a cabeça. É uma disputa entre um outsider, o histriônico Javier Milei, que se diz anarcoliberal; uma candidata de direita liberal, a ex-ministra da Segurança Patricia Bullrich, que empunha a bandeira da lei e da ordem; e um político de centro, o ministro da Economia, Sergio Massa, que representa o atual governo, mas não assume o legado do presidente peronista Alberto Fernández.
Nas primárias, Milei obteve com 29,86% dos
votos; a coligação de Patricia, 28%; e Sergio Massa, 27,27%. Juan Schiaretti e
Myriam Bregman qualificaram-se para estar no primeiro turno, mas ficaram muito
atrás dos três primeiros. Também serão eleitos 130 deputados (são 257 no total)
e 24 senadores (são 72 no total), governadores de Buenos Aires e Entre Rios e o
prefeito da cidade de Buenos Aires, que é uma cidade autônoma.
A bipolaridade da política argentina, entre
peronistas (centro-esquerda) e liberais (centro-direita), pela primeira vez,
desde a redemocratização, em 1983, pode ser quebrada. Esses dois polos nunca
foram homogêneos e se adaptavam às conjunturas, porém a trajetória da
Argentina, historicamente, é um fracasso continuado.
Fernández tentou realizar um governo com
perfil social-democrata, mas cedeu ao populismo, à forte presença do Estado na
economia e às políticas sociais financiadas pelo deficit público. O resultado
foi uma inflação galopante e mais um colapso fiscal, em meio a tensas relações
com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que cobra as dívidas argentinas.
Calotes sucessivos
De calote em calote, a decadência argentina
parece irreversível:
1827 — Dez anos após
a independência, a Argentina vendeu títulos da dívida em Londres que nunca
foram pagos aos credores;
1890 — Após
endividar-se para financiar a infraestrutura do país e a modernização de Buenos
Aires, entrou em moratória;
1951 — O fechamento
da economia provocou um default, em meio à turbulência política, com oito
presidentes em 20 anos;
1976 — Depois do
golpe militar contra o populista Juan Domingo Perón, o país esteve à beira da
moratória, o que provocou a criação do Grupo de Paris;
1982 — A Argentina
recorreu aos bancos ingleses e quintuplicou a dívida externa, de US$ 8 bilhões
para US$ 46 bilhões, e não suportou o choque de juros nos Estados Unidos;
1989 — No governo
Carlos Menem, a inflação galopante e a dívida crescente fizeram o país entrar em
recessão e desvalorizar o peso ainda mais;
2001 — Com o PIB
reduzido em dois terços, a Argentina teve cinco presidentes em duas semanas e
declarou a maior moratória de todos os tempos: US$ 95 bilhões da dívida;
2014 — No governo de
Cristina Kirchner, um juiz americano determinou que a Argentina só poderia
pagar credores após honrar seus débitos com um grupo de investidores dos EUA,
disputa somente encerrada em 2016, quando Mauricio Macri pagou todos os
credores.
Entretanto, Macri também foi responsável por
uma nova tomada de empréstimo junto ao FMI, de US$ 57 bilhões, em 2018. Em
março de 2022, o presidente Alberto
Fernández fez uma renegociação desse acordo com o fundo, no valor de
US$ 45 bilhões. O afrouxamento da dívida se deve às intensas negociações de
Massa com o FMI.
Esse é o trunfo do ministro da Economia nas
eleições, além do apoio quase explícito do governo brasileiro, que intercedeu
para a entrada da Argentina no Brics e concedeu um financiamento de US$ 689
milhões para a construção de um gasoduto. Patricia Bullrich defende um forte
ajuste fiscal e combate à criminalidade. A grande novidade é o surgimento de
Milei, que lidera as pesquisas.
Peronistas e antiperonistas têm em comum a
defesa e promoção da democracia, do Estado de Direito e dos direitos humanos.
Milei, porém, rompe esse consenso. Elogia a antiga ditadura militar argentina,
propõe o fim do Banco Central do país, a completa dolarização e o rompimento
das relações comerciais com a China.
Com Milei, o Brasil dificilmente conseguirá protagonizar o acordo do Mercosul com a União Europeia.
Cruzes!
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