domingo, 22 de outubro de 2023

Míriam Leitão - Argentina: dois passados trágicos e um futuro opaco

O Globo

Os argentinos começam a decidir hoje nas urnas o seu destino econômico e político, tendo à frente dias incertos

A Argentina e o Brasil viveram dois passados trágicos. A ditadura e a hiperinflação. Nós vencemos a hiperinflação há 29 anos. Para eles isso está presente no peso diário de carregar sacolas de dinheiro para fazer compras. Na política, parte da Argentina está disposta a hipotecar seu futuro a um candidato que defende o ideário da ditadura, tem uma motosserra na mão, propostas econômicas exóticas, e habilidade nas mídias digitais. O Brasil fez a mesma aposta em 2018 e viveu quatro anos de ultraje. A Argentina está presa a esses dois passados e tem pela frente um futuro de total “incertidumbre”.

Marcos Azambuja, que foi embaixador em Buenos Aires, entre 1992 e 1997, é autor de frases brilhantes que definem situações. Ele disse ao “Valor” de sexta-feira: “Milei representa a radicalização de direita. É perigoso acreditar no que ele diz, mas também é perigoso não acreditar”. À coluna, ele explicou o pensamento.

—Você erra quando não acredita na retórica eleitoral ou quando acredita demais nela. Pode se dissipar ou pode se aprofundar. Trump anunciou que ia fazer e fez. Bolsonaro anunciou que ia fazer e fez. As crônicas são de mortes anunciadas. Geralmente quem vem com discurso radical, cumpre o que vai fazer. Veio para fazer aquilo.

E “aquilo”, no caso, é o projeto autoritário embrulhado na palavra “liberdade”, como vimos no Brasil. Milei faz ameaças em relação ao Brasil, de rompimento, de não negociação. A resposta tem que ser serena, ensina o embaixador.

—Cabe a nós o ônus da racionalidade. Não podemos cair na armadilha política ou ideológica. O Brasil tem que ter a responsabilidade do seu peso, a serenidade do seu tamanho. Que não aceitemos provocação — diz o embaixador para a hipótese de o pior acontecer na Argentina.

As alternativas são de passados presentes. O peronismo de Sergio Massa que está no poder agora só agravou a situação econômica. E Patricia Bullrich, da direita tradicional, do ex-presidente Mauricio Macri, não resolveu a crônica crise de inflação, colapso cambial e default externo.

A Argentina se engana como nos enganamos. Há economistas lá que garantem que eles não estão em hiperinflação, apenas a inflação está alta, mas estabilizada. Lembra delírios semelhantes ditos no Brasil antes do Plano Real. O Banco Central de lá faz uma consulta como a do Focus. A previsão de 36 consultados era a de que a inflação de setembro seria de 11,7%. Deu 12,7%. Eles preveem 180,7% de inflação no ano. Com patamar assim e um candidato com chances de ganhar, chamando o peso de “excremento” e dizendo que abandonará a moeda, o resultado óbvio é a escalada inflacionária.

“Dólar sem teto”, disse o jornal “Clarín" na sexta-feira. O candidato governista decretou feriado bancário antes das eleições de hoje. Foi inútil. O dólar no paralelo saltou para 1.100 pesos. “Com isso, o informal praticamente dobrou de 650 pesos, que era a cotação durante as primárias em 13 de agosto”. O dólar oficial está congelado em 350 pesos, a diferença com o paralelo chegou a 214%, e o BC o vende por 1.000. Conhecemos os passos dessa estrada insana.

O FMI prevê que o ano terminará com uma recessão de 2,5%, mas com o fim da seca o PIB de 2024 será positivo em 2,8%. O ano que vem econômico depende muito do que acontecerá neste fim de semana ou em novembro, se houver segundo turno.

É até espantoso que numa conjuntura tão ruim na economia, com recessão, escalada inflacionária e dólar sem teto, o candidato governista, justamente o ministro da Economia, seja competitivo e esteja em diversas pesquisas com chances de disputar o segundo turno com Milei.

Segundo o site espanhol “20 minutos”, as pesquisas a três dias antes das eleições, quando foram suspensas pela lei eleitoral, indicavam a maior probabilidade de haver segundo turno, ou seja, nenhum dos candidatos teria 45% dos votos ou 40% com dez pontos na frente do segundo colocado. De oito pesquisas, sete davam a dianteira ao candidato da extrema direita.

—A Argentina tem uma tendência a chegar um pouquinho tarde no jogo. O Trump já está fora. O Bolsonaro já está fora. A retórica direitista extrema está desacreditada. E agora que a Argentina pode embarcar nesse barco — lamenta Azambuja.

As urnas dirão, hoje ou em novembro, quem comandará o barco argentino a partir de 10 de dezembro, dia da posse.

 

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