terça-feira, 3 de outubro de 2023

Luiz Schymura* - Credibilidade do novo arcabouço fiscal em teste

Valor Econômico

Com a árdua tarefa de elevar a receita pública, o governo terá que administrar as expectativas caso encontre muita dificuldade em auferir a carga tributária orçada para 2024

Nos próximos meses, o novo arcabouço fiscal (NAF) passará pelo seu primeiro grande teste. Na visão de muitos analistas e de boa parte do mercado financeiro, a questão crucial é saber se o governo conseguirá manter e efetivamente cumprir a ambiciosa meta fiscal de zerar o resultado primário em 2024. Não à toa, os agentes econômicos esperam respostas no curto prazo para saber até que ponto há confiabilidade no modelo que está entrando em vigor. Contudo, é importante frisar que o novo arcabouço não se restringe ao resultado fiscal de 2024. Na verdade, o NAF surge como resposta institucional a duas necessidades que a cada dia parecem mais evidentes: sinalizar para os agentes econômicos que as finanças públicas do país estão estruturalmente sólidas; e trazer qualidade e racionalidade ao processo orçamentário, respeitando os objetivos do governo.

Quanto ao objetivo de curto prazo de atingir o resultado primário zero em 2024, a missão não será nada fácil. De fato, o governo central terá que se esmerar para sair do provável déficit primário de 1,4% do PIB em 2023 para zero em 2024.

Como observa meu colega Manoel Pires, tomando por base o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2024, a despesa do governo no ano que vem fica no mesmo patamar da aguardada para 2023: 19,2% do PIB. Ele destaca, ainda, que a distribuição entre as diversas rubricas nos orçamentos de 2023 e 2024, como Previdência, pessoal, outras despesas obrigatórias e gasto discricionário, se mantém praticamente inalterada em proporção do PIB.

Assim, como nenhuma redução é esperada nos dispêndios públicos, o ajuste terá que vir, necessariamente, pelo lado da receita. Por isso, para cumprir o compromisso de zerar o déficit primário, o governo precisa aumentar, em 2024, a arrecadação em 1,4 ponto percentual (pp) do PIB em relação à apurada em 2023.

Com essa árdua tarefa de elevar a receita pública, o governo terá que administrar as expectativas caso encontre muita dificuldade em auferir a carga tributária orçada para 2024. O simples descumprimento de zerar o resultado primário sem diálogo e negociação com os principais atores políticos poderá ter consequências nefastas para a credibilidade do NAF.

Em função da introdução do NAF também é oportuno, por seu turno, refletir sobre o contexto no qual o processo de amadurecimento do instrumento fiscal-orçamentário brasileiro tem ocorrido.

Para começar, nunca é demais lembrar que a questão fiscal vem ganhando proeminência ao longo das últimas décadas. Em função do aumento da percepção da importância da solidez fiscal, as contas públicas passaram a ser olhadas com mais atenção. Nesse processo temporal, arranjos institucionais vêm sendo testados. Grosso modo, a partir do Plano Real, em 1994, houve três fases. Na primeira delas, a meta de resultado primário do ano foi o modelo-base instituído para garantir a estabilidade fiscal. Com o tempo, ficou patente que o embate por espaço no Orçamento ano a ano tornava o horizonte de previsibilidade fiscal muito curto. Era hora de mudar. A necessidade de introduzir um novo sistema que propiciasse mais confiança na solidez fiscal do país se impôs. Afinal, focar apenas no prazo de um ano era muito pouco para um país que queria vender a imagem de fiscalmente responsável. Nesse momento foi deflagrada a segunda fase do processo de aprimoramento institucional fiscal.

Em 2016 entrou em cena o teto de gastos. As premissas que norteavam o teto estabeleciam, basicamente, que as despesas públicas anuais deveriam crescer com a inflação. Naturalmente, com gastos públicos constantes em termos reais e economia crescendo, a relação despesa/PIB cairia ao longo dos anos, num processo de redução do tamanho do Estado brasileiro.

Embora o teto de gastos cumprisse satisfatoriamente o papel de garantir a solidez fiscal do país, o mecanismo se mostrou inexequível à luz da economia política brasileira. À medida que a economia deu sinais de melhora em suas receitas fiscais, a pressão por elevação de gastos cresceu, tornando, desse modo, politicamente insustentável a sua manutenção. A experiência com o teto frustrou a expectativa de muitos analistas, empresários, financistas e formadores de opinião que imaginavam ser possível, na atual conjuntura, reduzir o tamanho do Estado.

O fim do teto de gastos demarca o término da segunda fase. O início da terceira fase é identificada, por sua vez, com o surgimento do NAF. Em linhas gerais, o NAF disciplina os gastos públicos, sem perder de vista a melhora nas receitas do governo. Assim, à medida que o governo obtenha crescimento real em sua arrecadação, até 70% desses recursos podem ser usados na elevação dos gastos públicos. Na realidade, a aprovação do NAF representa a introdução de um marco institucional que promete atentar, conjuntamente, para o equilíbrio fiscal estrutural do país e para os anseios de uma sociedade bastante dependente do Estado.

Como já mencionado, ao analisar o PLOA de 2024, é possível constatar que as despesas públicas no ano que vem repetem os 19,2% do PIB a serem realizados em 2023. Assim, embora o crescimento da economia em 2023 venha na faixa de 2,5% (segundo o Boletim Macro do FGV Ibre), o Estado brasileiro não diminui seu tamanho, diferentemente do que ocorreria caso o teto de gastos ainda estivesse em vigor.

Em síntese, diante dos naturais obstáculos que existem à frente com a largada do NAF como novo arcabouço fiscal-orçamentário do Brasil, o governo não deve optar nem por cumprir a meta de resultado primário a qualquer custo nem por abandoná-la ao enfrentar as primeiras dificuldades. A arte do novo jogo da política fiscal consiste em administrar com maestria e sensatez o “tradeoff” entre caminhar na direção da sustentabilidade fiscal estrutural e prover um Orçamento exequível, coerente com o programa do governo e que consiga atender minimamente aos melhores anseios da sociedade em relação ao que o Estado brasileiro deve e pode oferecer.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre 

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