sábado, 14 de outubro de 2023

Marcelo de Azevedo* - O lugar da democracia representativa

O Estado de S. Paulo

Os que realmente pretendem resolver as grandes questões do País têm de recuperar e exercer a capacidade para o debate e disposição ao consenso

O Supremo Tribunal Federal (STF) segue protagonista da cena política nacional. Exemplos recentes foram a prisão do ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, a homologação da delação premiada do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro Mauro Cid e a invalidação das provas obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht.

A crítica a esse protagonismo se intensificou nos últimos meses. Afirma-se, por exemplo, que, debelado o golpismo bolsonarista, o STF não deveria mais concentrar todos os processos sob sua jurisdição, nem se valer de ações heterodoxas no combate aos aparentes malfeitos do governo anterior. A crítica procede: sem retirar os méritos do tribunal na defesa da democracia, ela projeta o momento em que os amplos poderes autoatribuídos pelos ministros nos últimos tempos deixarão de existir. Como será o STF quando esse dia chegar? O que ou quem fará com que tais poderes deixem de existir? Se não deixarem de existir, eles serão exercidos por qual/quais ministro(s)?

As contestações de renomados especialistas a algumas das ações recentes do tribunal dão sobrevida a críticas que costumavam ser encaradas mais como reclamações políticas. Ou como pura animosidade, como na acusação bolsonarista de que o País está diante de uma “ditadura do Judiciário” ou de uma “democracia judicial”; de que haveria, da parte de alguns ministros do STF, o exercício de um poder arbitrário, ou seja, orientado pela vontade do ministro, que, com suas decisões, não reconheceria “as quatro linhas da Constituição”.

Registre-se que essa acusação provém de um grupo cuja concepção de democracia costuma ser imprecisa, isto é, que acusa o Judiciário de implantar uma ditadura ao mesmo tempo que ignora ou recusa que o poder das maiorias formadas na democracia tenha limites constitucionais intransponíveis. Recorde-se a declaração de Bolsonaro, já citada neste espaço, de julho de 2022: “As leis existem (...) para proteger as maiorias. As minorias têm de se adequar”.

Moral da história: a crítica a uma democracia judiciária muitas vezes é feita por quem sustenta uma democracia plebiscitária, na qual o detentor do poder político – no caso, o vencedor da eleição presidencial – encontra-se liberado da obrigação de respeitar leis superiores cuja interpretação (pelo Judiciário) o limite. Não é assim, porém, que funcionam as democracias constitucionais, que combinam limitações ao poder do Estado com direitos fundamentais invioláveis pelas maiorias formadas no processo democrático.

Maiorias que encontram sua expressão mais significativa no Parlamento. É ali que divergências sobre questões de interesse nacional podem resultar em acordos que, se não são ideais, são ao menos aceitáveis para a maioria de nós/nossos representantes (foi o que ocorreu na aprovação da reforma tributária na Câmara). A legitimidade desses acordos não se funda simplesmente no fato de se ter chegado ao número de votos necessários à sua aprovação, mas em todo o processo que a antecede, e permite a diferentes correntes manifestaremse sobre o tema examinado.

O envolvimento dessas diferentes correntes em discussões que miram um entendimento sobre assuntos de interesse comum marca a especificidade dos debates legislativos diante de decisões judiciais, inclusive do Supremo. Nestas, prevalece a definição sobre a constitucionalidade ou não de uma medida. Por isso, normalmente há pouco espaço para acomodar diferenças de opinião ou interesse. Essas diferenças viram números, como vemos nos julgamentos do tribunal: 10 x 1, 6 x 5, etc. O vencedor da disputa judicial, então, leva tudo. Normalmente, não há meio-termo (ou não caberia ao órgão judicial alcançá-lo).

Isso não parece adequado a temas de grande dimensão e divergência na sociedade, que muitas vezes contêm múltiplos aspectos, nuances, vantagens e desvantagens dificilmente abarcáveis em decisões judiciais de sentido único. Além disso, pela grande dimensão desses temas, sua definição pelo Judiciário num dado momento não põe fim ao desacordo social nem à atuação dos derrotados no tribunal. Até porque os derrotados de ontem podem ser os vencedores de amanhã, como mostrou a recente decisão da Suprema Corte norte-americana no caso do aborto.

Portanto, se é inegável que a prática política brasileira tantas vezes deixa de se orientar pelos interesses da sociedade, também parece claro que isso não será reparado pela adoção de uma democracia judiciária ou plebiscitária. Melhor ficar com o exemplo da reforma tributária, que, como registrado em editorial deste jornal, “mostrou quão longe o Brasil pode avançar quando forças políticas adversárias são capazes de superar divergências para debater, civilizada e democraticamente, projetos de interesse de toda a sociedade” (10/7/2023).

Os que realmente pretendem resolver as grandes questões do País precisam recuperar e exercer essa capacidade para o debate e disposição ao consenso.

*Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp

 

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