quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Maria Cristina Fernandes - Na ONU, o jogo de um só derrota a paz

Valor Econômico

Só por desconhecimento ou má-fé se pode imaginar que a rejeição da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas tenha sido derrota brasileira

Só por desconhecimento ou má-fé se pode imaginar que a rejeição da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas tenha sido derrota brasileira. Se mal-intencionados não se curam, há um lote de razões para resgatar os primeiros.

Foram 12 votos, com uma folga, portanto, de três para a aprovação, impedida pelo veto americano. Entre os votos favoráveis estão França e China. O primeiro precisa de uma mediação para conter atentados que prosperam no país. O segundo optou por fortalecer uma proposta que teve como principal contendor, os EUA.

Entre os favoráveis à resolução constam ainda dois aliados americanos, Japão e Emirados Árabes, único país árabe no CSNU e signatário do acordo de Abraão, com EUA e Israel.

Reino Unido absteve-se porque sua diplomacia segue o compasso da americana, e Rússia porque revidou a abstenção brasileira em sua proposta a despeito de o Brasil ter apoiado suas emendas nessa quarta.

As concessões, guiadas pelo que o embaixador do Brasil na ONU, Sergio Danese, chamou de “realismo político”, levaram o texto a condenar o Hamas, pedir a libertação imediata dos reféns e rifar até o pedido de cessar-fogo imediato em nome de uma “pausa humanitária”.

Nada disso bastou. O veto não veio apenas pelas infinitas salvaguardas israelenses propostas pelos EUA. Não parecia haver, de fato, interesse em tirar a prerrogativa do presidente Joe Biden, que estava em Israel, na negociação.

“Estamos lá dando duro na diplomacia e precisamos deixar que esta diplomacia opere”, disse Linda Thomas-Greenfield, a embaixadora dos EUA. A votação deu-se no mais importante conselho do principal fórum mundial, mas diplomacia é a americana. Ou melhor, é a política americana que vale porque Biden não foi capaz de fazer diplomacia na viagem.

O rei Abdullah, da Jordânia, cancelou a cúpula que teria com Biden e os presidentes do Egito, Abdel Fattah al Sisi, e da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, depois do bombardeio do hospital em Gaza.

Antes de Biden, o secretário de Estado já havia tido dificuldades de transitar até junto a um aliado histórico, a Arábia Saudita. Anthony Blinken chegou a Riad no fim da tarde do sábado na expectativa de encontrar Mohammed bin Salman naquela noite. Acabaria informado de que o príncipe herdeiro, depois de um chá de cadeira, só o receberia no dia seguinte.

De Sisi, Blinken chegou mesmo a ouvir que, a despeito de o ataque do Hamas ser condenável, foi o resultado da “acumulação de fúria e ódio de quatro décadas em que não foi dada esperança de uma solução para os palestinos”.

O convite que Sisi estendeu ao Brasil para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participe da conferência que vai promover no Cairo neste sábado é mais um indício de que o Brasil, como diz o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, se legitimou no conselho.

A conferência, para a qual foram convidados os cinco membros permanentes do CSNU, a Espanha, na condição de presidente da União Europeia, a Jordânia, a Turquia, o Iraque, a Argélia e o Catar, já estava anunciada desde o domingo.

O Brasil, na condição de presidente do CSNU, não constava da lista de convidados. O chanceler Mauro Vieira chegou a conversar duas vezes ao longo da terça-feira com o chanceler egípcio, Sameh Shoukry, por conta da evacuação dos brasileiros de Gaza, mas o assunto não foi levantado. O convite só apareceria nesta quarta-feira depois da reunião do conselho, o que sugere o reconhecimento do esforço do Brasil em mediar posições. ‘

O Egito é um dos pivôs do conflito, visto que é a porta de saída humanitária não apenas para os estrangeiros residentes em Gaza quanto para os próprios palestinos.

A votação expôs o retrocesso imposto aos EUA em seu papel de mediador na região. Representantes dos países árabes assistiram à reunião e alguns, como o da Jordânia, se pronunciaram pela resolução.

E todos poderão voltar a se pronunciar numa reunião aberta do Conselho no dia 24 e numa plenária da Assembleia Geral quando os EUA devem expor as razões de seu veto. Isso se deve a uma mudança aprovada no ano passado, em função da Ucrânia, para constranger Rússia e China a não vetarem resoluções. Agora volta-se contra os EUA.

Parece claro que os americanos se expõem a esse desgaste em função da política doméstica. Com uma reeleição difícil no próximo ano, Biden teme se abespinhar com as comunidades judaica e pentecostal, que condicionam apoio à proteção dos EUA a Israel.

A encruzilhada de Biden se explicita quando se compara a conjuntura em que se aprovou a última resolução da ONU sobre os palestinos. Foi em 2016, último ano do governo Barack Obama, do qual o atual presidente americano foi vice.

Naquela ocasião, o conselho, por unanimidade, condenou os assentamentos israelenses em áreas palestinas. Pode-se argumentar que Obama não vetou porque não buscava reeleição, mas em 2009, quando ele ainda estava no primeiro mandato, duas resoluções de ajuda humanitária, cessar-fogo e proteção a civis foram aprovadas.

Depois das resoluções da era Obama, ascendeu Donald Trump. O veto desta quarta demonstra o que representa a ameaça de seu retorno num ambiente de fragilidade política de Biden, vide o enrosco em torno da presidência da Câmara. É aí, e não no vizinho de baixo, que devem ser buscadas as razões de a ONU ter dado as costas a Gaza.

 

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