segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Miguel de Almeida - Coração nas trevas

O Globo

Desde o traumático dia 7 de outubro, o terrorismo do Hamas exalou ondas de desumanidade

O conflito Israel-Hamas, não bastassem as mortes e a tristeza, se mostra agravado pelo modo Fla-Flu como os populares enxergam o mundo globalizado. Onde a turba tem opinião sobre todos os assuntos, inclusive medicamentos para Covid-19, questões atuariais ou ainda a dosimetria aplicada aos militantes do sopão bolsonarista.

O padrão violento das discussões nas redes sociais contamina o cotidiano, com um ódio feroz; exacerba as opiniões, que desconhece nuances; e provoca, ao final, outra quantidade de vítimas, abatidas desta vez pelos memes e pela lacração; ou ainda pela imposição autoritária de algum tipo de poder. Seja econômico ou emocional.

O tal post, em sua facilidade de ser multiplicado por um simples toque de dedo, fez muito mal à sociedade. Convenhamos, fala-se muita besteira sem pensar. Aquela leviandade antes inocente, muitas vezes maliciosa ou apenas recalcada, tornou-se arma ferina. A palavra escrita, quase sempre, pesa mais que uma fala, porque destituída da inflexão da voz ou dos gestos e trejeitos. Também das piscadelas.

O militante de post, aquele tipo que se quer bem-intencionado, é como um deputado do MBL ou o governador Zema — a espontaneidade revela o preconceito e a superficialidade das propostas. Querer extinguir a Cracolândia com a força policial ou enxergar o mundo como campo de batalha pode ser apenas uma descompensação de formação, mas que se torna perigosa ao ser conectada com outros belicosos tipos semelhantes. O vozerio dos idiotas, numa licença roubada de Umberto Eco.

Desde o traumático dia 7 de outubro, o terrorismo do Hamas exalou ondas de desumanidade, não apenas junto ao populacho anônimo das redes, mas entre intelectuais, empresários ou professores. Ecoadas por estudantes universitários, verbalizadas por líderes políticos. Não apenas no Brasil, porque a insensatez não é privilégio nacional. É coisa de país subdesenvolvido ou de país rico.

Além da desumanidade, assusta o mecanismo de censura às opiniões ou ao que poderia vir a ser um debate. A lacração se deu na PUC do Rio, com o professor Michel Gherman, que nem sequer conseguiu expor sua análise, e se agrava nos Estados Unidos, a partir do poderio econômico.

Trava-se um duelo de narrativas em várias universidades americanas, onde a questão da liberdade de opinião sofre duro desgaste. Por todos os lados. Em Harvard, depois que várias associações de alunos, por meio de manifestos, denunciaram o governo de direita de Benjamin Netanyahu, diversos empresários judeus, mantenedores da instituição, ameaçam cortar suas doações. O dono de um fundo de investimento em startups de alta tecnologia pediu a lista dos nomes dos estudantes que se colocaram contra a política de Israel. Para evitar que sejam contratados quando estiverem formados. Outro escritório de advocacia, entre algumas outras firmas, seguiram semelhante toada. Até que outro investidor judeu chamou os colegas ao chão, para que entendessem o desarrazoado das retaliações. Interessante que, nos livros de Philip Roth, de muitos personagens saltam críticas no mesmo conteúdo das hoje reverberadas pelos universitários.

Até o momento em que escrevo, apesar de a esquerda judaica nova-iorquina concordar com parte dos termos dos estudantes, a pressão continua. A reitora de Harvard, Claudine Gay, primeira negra a ocupar o cargo, está sob tiroteio por não ter reagido prontamente ao manifesto. Entre os próprios alunos há divergências e, se alguns alegam haver antissemitismo nos ataques, outros reivindicam o direito à liberdade de opinião. Quem já frequentou a universidade conhece bem o ambiente, em geral exacerbado, polarizado e crítico por natureza. Fazem parte da vida acadêmica, por definição, o engajamento e a tomada de posição. Agora, como noutras situações, exalam preconceitos — um professor de História, Russell Rickford, de Cornell, outra importante universidade americana, declarou durante sua aula estar “exultante” com os ataques do Hamas. Tal opinião não estaria protegida sob o conceito de liberdade de expressão. Caso não seja algo assemelhado ao antissemitismo praticado pelos nazistas, revela imensa desumanidade e mostra que a ignorância se esconde também sob o verniz ideológico.

Ao ler a nota do PT, em resposta mal-educada ao embaixador de Israel no Brasil, assinada e vocalizada pela renomada Gleisi Hoffmann, volta à memória a lembrança de que Stálin eliminou todos os revolucionários judeus. Matou-os. A começar por Trótski. Stálin não suportava divergência e opiniões contrárias. Diante do debate, condenava o crítico à morte.


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