domingo, 8 de outubro de 2023

Muniz Sodré* - Margens plácidas

Folha de S. Paulo

Bethânia cantou com carga simbólica à altura do momento que o Supremo atravessa

É clichê passável dizer que o hino nacional foi "executado" numa cerimônia. Mas seria desdizer o que fez Maria Bethânia, acompanhada de violão, na posse do presidente do Supremo Tribunal Federal. Não é a primeira cantora de grande mérito a cumprir a tarefa. Pela primeira vez, porém, o STF acolhe uma performance com carga simbólica à altura do momento que atravessa essa instituição. Não mera execução, mas expressão de uma vitalidade popular que, naquele ato, marcou encontro com o tribunal.

Essa vitalidade ratifica a ideia de povo como forma dinâmica: tornar-se, mais do que ser, ou seja, um processo político que produz seu próprio sujeito. Povo é o princípio que transforma a população (gente agregada) em sujeito de soberania ou de uma determinada autonomia frente ao Estado. A verdadeira política não prescinde de um sujeito coletivo. E povo afirma-se como forma coletiva de subjetivação.

Evidente que esse não é o ponto de vista neoliberal, para o qual a massa não é sujeito nem objeto político, e sim efeito estatístico do mercado. Daí emergiu, nos quatro anos do balão de ensaio protofascista, uma faceta embrionária do populacho: figuração pré-política movida a ressentimento. Agitou a cena eleitoral, sem afetar as formas diversas de subjetivação que singularizam a civilização brasileira: negros, indígenas, camponeses, ribeirinhos, caboclos, brancos e 305 povos originários com 274 línguas.

Apesar da composição conservadora e do voluntarismo monocrático, o STF desenha-se como trincheira civilizatória. Pertence à boa memória nacional o Relatório Lewandowski, mais avançado na pauta identitária do que, na época, a imprensa, nichos acadêmicos e um estapafúrdio manifesto de "moscas varejeiras" gramscianas.

Atenção, porém, ao discurso público. Disse o presidente da corte que "derrotamos o bolsonarismo". Menos, menos, nada de jogo jogado. O espectro do proscrito ainda baliza o fenômeno extremista, visceral numa parte morbosa do corpo orgânico da nação. Disso há sequela dentro do próprio tribunal: o carrego de paus-mandados, plantado pela entidade obsessora que partiu. Ali não cresce grama progressista, ali não terão soado aplausos sinceros a Maria Bethânia.

Escandindo sílabas em ritmo pausado, avesso ao tararatchimbum dos brucutus, a artista interpretou o hino, chamando a atenção para o que possa haver de sentido aberto nos versos e dar espaço interno a outras entoações. A memória da voz que arrebatou plateias jovens com "Carcará" repercutiu na terceira idade do tribunal e no povo das margens plácidas: um alegre alento à persistente "esperança equilibrista" (João & Aldir) de melhores dias nacionais. "Fagulha divina", bem disse o ministro.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Nenhum comentário:

Postar um comentário