terça-feira, 24 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Renovação da desoneração é medida urgente

O Globo

Adiamento de projeto fundamental para criar postos de trabalho já prejudica planejamento de empresas

A Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) voltará a analisar hoje o Projeto de Lei (PL) que prorroga até o final de 2027 a desoneração da folha de pagamento de 17 setores caracterizados por empregar grande volume de mão de obra. Estão em jogo perto de 9 milhões de empregos gerados diretamente, sem contar aqueles distribuídos pelas cadeias produtivas. Para a programação orçamentária e de investimento das empresas brasileiras, é fundamental a aprovação célere do projeto que substitui a contribuição previdenciária de 20% da folha salarial por outra que varia de 1% a 4,5% do faturamento.

Um governo que quer estimular emprego não deveria mais perder tempo diante das evidências. A redução de encargos trabalhistas, em vigor há mais de dez anos, contribuiu para aumentar a arrecadação previdenciária, enquanto as empresas foram liberadas para investir mais em inovação e tecnologia, ganhando competitividade. É um caminho seguro para o crescimento sustentado de toda a economia.

Entre 2018 e 2022 a contratação de mão de obra cresceu 15,5% nos segmentos desonerados, que incluem transportes, construção civil, infraestrutura, comunicação, calçados, têxtil, centrais de atendimento, telecomunicações máquinas e equipamentos etc. Nos 13 setores reonerados para compensar a redução de impostos sobre o diesel, o aumento foi de apenas 6,8%, segundo análise do grupo Desonera Brasil. Calcula-se que, se a reoneração tivesse sido aplicada a todos os 17 ramos de atividade, 1,6 milhão teriam perdido o emprego.

Causou estranheza que o pedido de vista do Projeto de Lei na CAE do Senado tenha sido feito com aval do governo, apesar do amplo apoio à proposta no Congresso, inclusive na bancada do PT. A demora na tramitação preocupa empresas e lideranças sindicais. Uma mudança drástica na tributação, com o retorno dos 20% de contribuição previdenciária sobre a folha salarial, não afetaria apenas o mercado de trabalho. Teria efeitos perniciosos também na inflação, segundo afirmou em entrevista ao GLOBO o sociólogo José Pastore, da USP, um dos mais renomados especialistas em mercado de trabalho no Brasil. Se houver pressão de custos forte nos 17 setores, a primeira reação das empresas será repassá-la aos preços. Ao mesmo tempo, elas dispensarão empregados para reduzir sua operação. Tudo isso, diz Pastore, acontecerá em janeiro caso a desoneração não seja mantida.

Um acidente de percurso foi o contrabando para o texto de uma emenda sem relação com o PL — um “jabuti”, no jargão de Brasília — reduzindo de 20% para 8% a contribuição previdenciária dos municípios. Essa emenda apenas prejudica o caixa da Previdência sem criar novos empregos. Deveria ter sido tratada por PL à parte, mas não foi. Como o tempo para que a desoneração continue a valer em 2024 encurtou, ela não pode servir de pretexto para retardar ainda mais a aprovação do projeto. Ele precisa ser sancionado logo, do contrário a economia sofrerá danos incontornáveis.

Monitoramento de celulares revela nova ameaça contra democracia

O Globo

Uso de sistema de localização pela Abin sob Bolsonaro expõe risco ao direito fundamental à privacidade

A espionagem ilegal durante o governo Jair Bolsonaro é caso de extrema gravidade. Merecem punição exemplar os que a operaram ou a comandaram. Na última sexta-feira, a Polícia Federal prendeu, com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), dois servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), além de ter cumprido 25 mandados de busca e apreensão e colhido o depoimento de 20 investigados e testemunhas. A investigação da PF, iniciada em razão de reportagem publicada pelo GLOBO em março, revelou que agentes da Abin monitoraram, sem a devida autorização judicial, os passos de políticos, juízes, advogados, opositores de Bolsonaro e jornalistas.

Três funcionários da Abin foram afastados de suas funções, entre eles o atual secretário de Planejamento e Gestão, Paulo Maurício Fortunato Pinto, número três na hierarquia da instituição. Na época em que o programa espião estava em atividade, a Abin era comandada por Alexandre Ramagem, hoje deputado federal pelo PL do Rio, e Fortunato Pinto era seu diretor de Operações. Ramagem afirmou esperar que a investigação não se deixe levar por “falsas narrativas e especulações”.

Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o programa, chamado FirstMile, permite monitorar os passos de até 10 mil proprietários de celular. Por meio de antenas das empresas de telefonia, localiza os aparelhos, traça mapas e até emite alertas quando o alvo se aproxima de um endereço. O FirstMile foi comprado pelo governo brasileiro no final do governo Michel Temer, mas os indícios de uso ilegal se concentram na gestão posterior, como revelou O GLOBO em março. O sistema foi acionado mais de 30 mil vezes. Em 1.800, para monitorar desafetos do governo Bolsonaro. Parte dos acessos foi apagada.

Serviços de inteligência de diferentes países tiveram de se atualizar com a digitalização nas últimas décadas. Se usadas dentro da lei, ferramentas de monitoramento podem ser úteis para identificar e desbaratar ameaças. Usadas clandestinamente, porém, tornam-se instrumentos de ataque ao direito fundamental à privacidade e também à democracia. Por isso todos os sistemas de escuta precisam estar sujeitos a controles rigorosos, tanto legais quanto técnicos. Em particular, aqueles fornecidos por empresas estrangeiras, quando armazenam dados em computadores fora da jurisdição brasileira.

A investigação da PF precisa prosseguir. Há ainda muitas perguntas sem resposta. É urgente esclarecer o que aconteceu e, comprovados os crimes, tomar as medidas necessárias para que não se repitam.

Votos dos conservadores definirão eleição argentina

Valor Econômico

O turno final entre populistas de direita e de esquerda não sinaliza um desfecho promissor

O peronista Sergio Massa, ministro da Economia, recebeu doses de energia eleitoral inesperadas e venceu o primeiro turno das eleições presidenciais argentinas com mais de 6 pontos de vantagem (1,76 milhão de votos) sobre o segundo colocado, o “anarcocapitalista” Javier Milei - obtiveram 36,68% e 29,98%, respectivamente. Massa, do União pela Pátria, avançou 7,8 pontos percentuais em relação aos sufrágios obtidos nas primárias obrigatórias, enquanto Milei teve menos votos do que os que o colocaram como vencedor na ocasião (30%). Os eleitores que apoiaram Patricia Bullrich, a centro-direita de Juntos pela Mudança, que obteve 23,8% dos votos (6,2 milhões), são agora o fiel da balança do segundo turno, em 19 de novembro. É em grande parte um eleitorado conservador e antiperonista. Apesar da reação de Massa, é impossível prever o resultado.

Como ministro da Economia e candidato, Massa tem a chave do cofre do Tesouro e utilizou largamente recursos públicos para conquistar votos. Depois de concordar com uma desvalorização do peso como pré-condição para que o FMI liberasse US$ 7,5 bilhões no fim de agosto, ele não poupou medidas compensatórias contrárias ao espírito do acordo com o Fundo e que aprofundaram um dos principais problemas que arrastaram novamente o país a uma profunda crise econômica: o crônico déficit fiscal. Massa lançou, por exemplo, o Compre sem IVA, em que aposentados, pensionistas e pessoas de baixa renda recebem de volta 21% do que gastaram em supermercados. Atrasou a correção das tarifas de transporte e energia, deu bônus de 20 mil pesos (20 dólares) para desempregados e 94 mil pesos para trabalhadores informais, além de dar mais bônus a aposentados e trabalhadores das empresas privadas. Além disso, isentou do Imposto de Renda quem ganha até 1,7 milhão de pesos (US$ 1,7 mil, ou R$ 8,5 mil), reduzindo o número de contribuintes a 90 mil pessoas, ou menos de 1% dos trabalhadores e aposentados.

Máquina e recursos do Estado foram usados sem subterfúgios para favorecer sua candidatura. Estima-se que a expansão monetária de origem fiscal no ano até setembro tenha sido de 6% do PIB, só suplantada pelos 7,5% do PIB dos gastos do governo durante a pandemia.

O peronista colheu frutos também de uma campanha agressiva na qual indicou como seria a Argentina com Javier Milei na Presidência. Disse que todas as famílias teriam de pagar do próprio bolso a vacinação de seus filhos, já que seu oponente pretendia cortar radicalmente gastos com saúde, e espalhou nas estações de metrô cartazes com preços atuais da tarifa e quanto custariam se Milei vencesse (56 e 1100 pesos, respectivamente). Fez uma propaganda do medo, facilitada pelo discurso radical e irresponsável de seu adversário.

Os dois fatores, recursos e propaganda apelativa, funcionaram. A votação de Massa foi a menor dos peronistas desde a redemocratização, mas ele teve mais de um milhão de votos novos na província de Buenos Aires, dominada pelos peronistas. As propostas de Milei, apresentadas por ele com histrionismo, pareceram assustadoras para uma parcela do eleitorado.

Mas Massa terá grandes desafios à frente. Mesmo que receba todos os votos do candidato peronista dissidente Juan Schiaretti (6,8%) e da esquerda de Myriam Bregman (2,7%), terá 46,1% dos votos, supondo que a participação do eleitorado seja idêntica. Os votos de Milei mais os de Patricia Bullrich somam 53,8%. Não haverá transferência total de sufrágios do Juntos pela Mudança para Milei, porém é possível que uma parcela de apoiadores mais moderados de Patricia já tenha migrado no primeiro turno para o lado de Massa. Entre as primárias e domingo, Patricia perdeu 700 mil votos, que possivelmente eram os dos que apoiaram seu rival nas primárias, Horacio Larreta, prefeito de Buenos Aires. A preferência da candidata ficou clara em discurso na noite da derrota: “Não sou eu quem vai felicitar a quem fez parte do pior governo da história”, disse. “Nunca seremos cúmplices das máfias que destruíram o país”.

Os mercados reagiram mal ao resultado com mais desvalorização do peso e forte queda nas ações. Em 14 meses como ministro, Massa fez malabarismos para impedir o caos antes da eleição, mas teme-se que continue com sua política de mais do mesmo caso vença - caminho certo para o abismo. Não se conhece seu programa, embora ele seja um peronista da ala conservadora, exímio articulador, aceite reformas e tenha bom diálogo com o empresariado. Milei tem um programa radical, que abole o peso, mas não tem equipe nem terá força no parlamento, isto é, não estaria à altura dos problemas graves que terá de resolver.

Seja quem for o vencedor, dependerá do Legislativo. Não há maioria na Câmara - de 257 membros, os peronistas têm 108 cadeiras, os conservadores, 93 e Milei, 37. Conservadores e “libertários” unidos alcançariam 129 votos, 50% mais um, mas peronistas e independentes, não. A configuração política do parlamento torna a qualquer um dos dois difícil aprovar medidas de longo alcance para debelar a crise. O turno final entre populistas de direita e de esquerda não sinaliza um desfecho promissor.

Respiro argentino

Folha de S. Paulo

Segundo turno oferece chance para pesar projetos contra severa crise econômica

O segundo turno da eleição presidencial na Argentina oferece um respiro ao país, até 19 de novembro, para reavaliação das possíveis consequências de propostas dos dois candidatos remanescentes na disputa, que ocorre em meio a grave crise econômica de difícil solução.

Passaram para a nova fase o peronista e ministro da Economia, Sergio Massa, 51, com 36,7% dos votos, e o ultraliberal Javier Milei, 53, que teve frustrada a expectativa de vitória no primeiro turno. Ele acabou em segundo lugar, com 30%.

Além de contradizer a maioria das pesquisas, a liderança de Massa no domingo (22) surpreendeu pelo fato de a economia argentina ter se deteriorado rapidamente desde que ele se tornou ministro, em agosto de 2022. De lá para cá, a inflação dobrou, atingindo 138,3% no acumulado em 12 meses.

Massa opera como virtual mandatário argentino desde abril, quando o presidente Alberto Fernández, com a popularidade em ruínas, desistiu da reeleição.

Além de desfrutar de boa relação com empresários, sindicatos e o Fundo Monetário Internacional, que vem proporcionando US$ 44 bilhões em socorro à Argentina, o ministro é tido como liberal entre os peronistas mais radicais.

Para atacar Milei na reta final, no entanto, Massa o acusou de planejar o desmonte de uma miríade de subsídios criados pelos peronistas.

Na raiz da atual crise, as subvenções para a energia representaram 82% do déficit fiscal argentino no ano passado, levando o Estado a arcar com 79% do custo da luz e 71% do gás de todos aqueles conectados às redes de fornecimento.

Sem mexer nisso, um eventual governo Massa perpetuaria o populismo e tenderia ao fracasso. O mais provável é que enfrente a questão com gradualismo, o que traz riscos, tanto econômicos como em termos de popularidade.

Sua arrancada no primeiro turno, contudo, parece ter sido impulsionada pelo temor de muitos eleitores, sobretudo os mais velhos e no establishment, em relação às propostas exóticas de Milei.

Entre outros extremismos, ele promete dolarizar uma economia que não tem dólares e fechar um Banco Central que é hoje a única fonte de financiamento estatal —imprimindo pesos e alimentando a inflação, de fato, mas sem provocar ainda uma disrupção total.

Neste cenário, os 28,8% de votos da terceira colocada, Patricia Bullrich, 67, rival dos peronistas, devem definir o pleito. Resta saber se seus eleitores apoiarão o radicalismo de Milei ou se arriscarão a eleger algo que pode ser mais do mesmo.

Para o Brasil, que tem na Argentina seu principal destino de produtos industrializados e o terceiro maior parceiro comercial, não é pouco o que está em jogo.

Espionagem inaceitável

Folha de S. Paulo

São gravíssimas as suspeitas da PF sobre vigilância pela Abin sob Jair Bolsonaro

Governos autoritários, por definição, sacrificam direitos dos cidadãos em nome de algum alegado bem maior, assim definido por ninguém menos que a própria cúpula ditatorial. Liberdade, intimidade e garantias processuais, por exemplo, tornam-se palavras mortas para quem só entende a linguagem da força e do arbítrio.

Faz quase 40 anos que o Brasil se livrou desse tipo de opressão estatal, mas, a crer nas investigações da Polícia Federal, o governo de Jair Bolsonaro (PL) mandou às favas alguns princípios constitucionais e decidiu monitorar, de forma secreta e ilegal, a geolocalização de celulares de jornalistas, políticos e adversários do então presidente.

De acordo com a PF, a espionagem partiu da Abin e ocorreu de 2019 a 2021. A Agência Brasileira de Inteligência teria utilizado um software adquirido por R$ 5,7 milhões, sem licitação, no último ano do governo Michel Temer (MDB).

Chamado FirstMile, o instrumento permite rastrear o GPS de qualquer pessoa pelos dados transferidos para torres de telecomunicação, com o limite de 10 mil celulares a cada 12 meses. Também é possível criar alertas em tempo real, para informar quando um dos alvos se movia para outros locais.

Foi com base nessas suspeitas repulsivas que a PF deflagrou, na sexta-feira (20), uma operação para cumprir 25 mandados de busca e apreensão, além de dois de prisão de servidores da Abin —que terminaram demitidos no mesmo dia.

Outros membros da Abin, por sua vez, reclamaram do espalhafato da PF; eles afirmam que a própria agência começou as investigações na gestão atual e compartilhou as informações levantadas com os órgãos competentes.

Sendo verdade, será mais um episódio lamentável nessa trama maior, cuja gravidade só faz crescer a cada nova descoberta. Uma delas é que o Exército adquiriu o mesmo software de espionagem —e se recusa a responder perguntas da Folha sobre o uso da ferramenta.

Não se trata de negar às forças de segurança e militares o direito de investir em inteligência. Ações preventivas e de investigação, desde que revestidas de legalidade, são mais bem-vindas que a repressão bruta após o estrago ter sido feito.

Dado o histórico do governo Bolsonaro, contudo, parece natural a suposição —ainda por comprovar— de que mecanismos desse tipo tenham sido destinados a outro fim: reforçar os planos abilolados de desfechar um golpe de Estado.

Aos 20, Bolsa Família precisa entregar mais

O Estado de S. Paulo

Transformado em política de Estado permanente, programa social tem todas as condições de fazer mais com menos e se tornar um verdadeiro instrumento de transformação social

O Bolsa Família completou 20 anos de existência na semana passada, um feito raro e digno de nota na errante história das políticas públicas brasileiras. Sua perenidade demonstra a força (eleitoral, inclusive) de um robusto programa de transferência de renda, bem como serve para que se constate o desafio que é superar a extrema pobreza em um país tão desigual quanto o Brasil.

Em um mundo ideal, um programa social bem-sucedido manteria um gasto relativamente estável ao longo dos anos ou mesmo tenderia a registrar uma progressiva redução com o passar do tempo. Infelizmente não é o caso. O Bolsa Família deve consumir R$ 175 bilhões neste ano, ante os R$ 30 bilhões que o governo federal gastava em 2019. Nesses quatro anos, o número de famílias atendidas subiu de 14 milhões para 21,5 milhões, enquanto o valor médio do benefício subiu de cerca de R$ 190 para quase R$ 700.

É inegável que a pandemia de covid19 jogou milhões de pessoas em uma situação de extrema vulnerabilidade. Mas havia uma rede de proteção social a recorrer e, bem ou mal, um programa social consolidado há muitos anos. Ele certamente demandava aprimoramentos e ajustes, sobretudo para promover a emancipação e a inclusão produtiva, mas é inegável que também tinha suas virtudes.

A atabalhoada e eleitoreira criação do Auxílio Emergencial pelo governo Jair Bolsonaro começou a demolir as bases do Cadastro Único, porta de entrada dos programas sociais cuja existência precedia o próprio Bolsa Família. O Auxílio Brasil consolidou um processo de desconexão entre o Bolsa Família e o Sistema Único de Assistência Social (Suas), eliminando as necessárias contrapartidas que o benefício impunha às famílias, como a frequência escolar e o cumprimento do calendário de vacinação das crianças.

A antiga marca Bolsa Família voltou no início do terceiro mandato de Lula da Silva sem resolver as falhas do programa original e carregando os novos problemas criados pelos anos de bolsonarismo. Apesar do esforço para identificar fraudes, o número de famílias unipessoais continua relativamente alto, as filas para receber o benefício continuam a se formar mês a mês e milhares de pessoas vivem em situação de rua nos centros das principais cidades do País.

Em 2003, o programa tinha outra cara, um custo mais baixo, um alcance muito mais reduzido e proporcionava um benefício bem mais modesto. Mas nem o gigantismo que o Bolsa Família assumiu nos últimos anos foi capaz de dar fim à extrema pobreza, o que impõe a necessidade de avaliar seus resultados de maneira contínua, de sorte a atingir seus objetivos de uma forma mais eficaz.

Não há dúvida de que é possível fazer mais com menos ou fazer melhor com o que já se tem. Já há um diagnóstico sobre o que deve ser feito. O piso de R$ 600 por família é uma distorção a ser corrigida. Em seu lugar, o Banco Mundial sugere um benefício calculado por membro da família e um valor adicional por criança ou jovem de até 18 anos.

Tal mudança reduziria o orçamento anual do programa para cerca de R$ 130 bilhões e resgataria seu foco, priorizando o pagamento do auxílio aos que mais precisam. A sobra de recursos poderia ser direcionada para o reforço de outros programas de assistência social e políticas direcionadas à primeira infância, à inclusão produtiva e aos idosos.

É necessário considerar a situação de cada família de forma individual. Há famílias que jamais conseguirão deixar a rede de assistência social, mas há também aquelas que precisam apenas de uma oportunidade para conquistar a independência. Para isso, é fundamental fortalecer o Cadastro Único e resgatar a articulação com os municípios, que sempre foram o elo mais próximo às famílias.

Há numerosos exemplos de crianças que eram atendidas pelo programa e que hoje são adultos autônomos, com bons empregos e negócios próprios. É preciso ouvi-los para saber como replicar suas histórias. Transformado em uma política de Estado permanente, o Bolsa Família tem todas as condições de deixar de ser um recurso eleitoreiro para se tornar um instrumento de transformação social.

O flerte da Argentina com o abismo

O Estado de S. Paulo

Primeiro turno da eleição presidencial acirra polarização entre o peronismo de Massa e o voto de protesto em Milei sem abrir margem para um futuro governo com maioria no Congresso

Surpreendeu o primeiro turno das eleições presidenciais argentinas, anteontem. Do terceiro lugar nas primárias de agosto, o ministro da Economia, Sérgio Massa, surgiu como forte candidato à Casa Rosada, apesar de sua notória incapacidade de entregar uma inflação abaixo de galopantes 140% no fim deste ano. Isso mostra a força do peronismo, mesmo combalido. Massa disputará o segundo turno de 19 de novembro contra o candidato “antissistema” Javier Milei, que as pesquisas davam como favorito inclusive para vencer no primeiro turno, mas que aparentemente esbarrou no pragmatismo do eleitor. Na eleição de anteontem, pelo visto, o eleitorado escolheu dois candidatos que, ao que tudo indica, vão levar a Argentina ao abismo, mas em ritmos diferentes: pode ser lentamente, com Massa, ou em tresloucada corrida, com Milei.

As polarizadas eleições argentinas não sublimaram o ceticismo em relação à brutal crise econômica e social e à sua origem política. Ao contrário, deixaram como marca a reação de parte dos eleitores contra a pobreza das escolhas impressas nas cédulas eleitorais. Não surpreende o fato de o comparecimento de 74% dos argentinos aptos a votar ter sido um dos mais baixos desde a redemocratização, em 1983. É inegável a existência de uma fatia do eleitorado desgostosa com qualquer das cinco candidaturas postuladas – entre as quais, as duas escolhidas para o segundo turno.

Se Javier Milei pretendia realmente vencer no primeiro turno com base no voto de protesto, já terá avaliado neste momento a rejeição a sua proposta de eliminar, com uma simbólica motosserra, a classe política tradicional. Mais ainda a suas ideias de dolarização da economia, de implosão do Banco Central e de privatização da Saúde e da Educação – além de sua defesa a uma ditadura militar que até hoje deixa feridas expostas na sociedade argentina. Não é desprezível o fato de ir para o segundo turno com o respaldo de 30% dos votos. Salta aos olhos, porém, seu recuo de quase dois pontos porcentuais, ante os resultados das primárias, e o aumento de sete pontos para Massa, com 36,7%.

O fiasco de Patricia Bullrich certamente será creditado a erros cometidos por sua coalizão de centro-direita, Juntos pela Mudança. A começar pela sua própria candidatura. Ex-ministra dos fracassados governos de Mauricio Macri e de Fernando de La Rúa, Bullrich terá atraído com maior profundidade a raiva do eleitorado à classe política, resgatada por Milei dos protestos de 2001 sob o bordão “que tudo se exploda!”. Apesar de propor maior equilíbrio entre ajuste fiscal e preservação da assistência aos mais vulneráveis, a centro-direita saiu-se do primeiro turno encolhida, com 23,3% dos votos, uma perda de seis pontos porcentuais desde agosto. Esse eleitorado de terceira via, embora mais disposto a justificar do que a votar, será o alvo de Massa e Milei nas próximas quatro semanas.

Todos os cálculos dos dois presidenciáveis envolverão riscos. Milei já vinha moderando suas promessas mais extemporâneas para a economia, como meio de tornar-se mais palatável. Os resultados de domingo dão pouco alento a essa manobra e indicam radicalização. Massa vinha despejando medidas de cunho populista, claramente inflacionárias, e uma forte propaganda nas redes sociais contra seu principal oponente. Aparentemente, terá dado certo. O preço será a taxa de inflação a ser conhecida seis dias antes das eleições.

Seja qual for o escolhido em 19 de novembro, está evidente não haver panaceia para a crise argentina. A grande maioria pareceu entender isso ao negar seu voto a Milei no domingo. As eleições legislativas, por sua vez, indicam dificuldade para Massa fazer valer seus projetos sem uma incerta aliança com a centro-direita, depois de o peronismo ter perdido 25 cadeiras na Câmara de Deputados. Milei conseguiu engrossar sua bancada de 3, inclusive ele, para 37 parlamentares. O horizonte de seu eventual governo é de reprovação de sua agenda – dentro da intocável normalidade democrática. À crise em movimento na Argentina, soma-se agora o espectro da ingovernabilidade.

Solidariedade é a regra

O Estado de S. Paulo

Doação presumida de órgãos é excelente, mas deve ser acompanhada pela capacitação do SUS

O presidente Lula da Silva orientou parlamentares da base aliada no Congresso a apoiar o Projeto de Lei (PL) 1.774/2023, que institui a doação presumida de órgãos e tecidos humanos no País. O projeto inverte a atual dinâmica do processo. Hoje, quem deseja ser doador deve manifestar expressamente essa vontade; em caso de silêncio, familiares da pessoa falecida devem autorizar a retirada de seus órgãos ou tecidos. Caso o PL 1.774 seja aprovado, todos os brasileiros que não se manifestarem em contrário serão considerados doadores de órgãos.

O apoio do governo Lula ao avanço do PL 1.774 é uma excelente notícia para milhares de brasileiros, considerando os cerca de 50 mil pacientes que esperam por um transplante. De acordo com o texto, proposto pelos deputados Maurício Carvalho (União-RO) e Marangoni (União-SP), “presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano para transplantes ou outra finalidade terapêutica, salvo manifestação de vontade em contrário”.

O projeto é cuidadoso. Primeiro, porque assegura a liberdade dos cidadãos que não desejam ser doadores, seja qual for sua razão. Além disso, o processo de manifestação de recusa é simples. Segundo a proposta, “todo indivíduo que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo para a doação (...) deverá registrar em documento público de identidade o seu desejo de não ser doador de órgãos e tecidos”. Caso mude de ideia, basta retirar a menção do documento oficial.

Outra prudência do PL 1.774 foi manter a exigência de autorização expressa de parente maior de idade para doação de órgãos e tecidos de menores de 16 anos ou de pessoa que, “por deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”. Também não é presumida a doação de órgãos dos cidadãos que não possuem documento público de identidade.

Oxalá o PL 1.774 seja convertido em lei. Muito mais pessoas ganharão qualidade de vida com a doação presumida. Outros tantos, mais ainda: terão a chance de continuar vivendo, como é o caso dos que passam pela angustiante espera por um transplante de órgãos mais urgente, como os que envolvem coração, pulmão, pâncreas ou fígado.

Entretanto, a doação presumida, isoladamente, até pode fazer do Brasil o país com o maior número de doadores do mundo. Mas de que isso valerá se o Sistema Único de Saúde (SUS) não estiver preparado para o aumento significativo do número de cirurgias? É fundamental que o PL 1.774 venha acompanhado de outras medidas aptas a ampliar a capacidade geral do SUS, tanto para captar órgãos em volume inaudito como para realizar as cirurgias, além do acompanhamento dos pacientes pós-transplante.

O Brasil já é referência mundial em transplantes de órgãos. A sociedade deve se orgulhar por contar com o maior sistema público de saúde para realizar esse tipo de cirurgia. Com os devidos cuidados e ações coordenadas, esse quadro só tende a melhorar, e cada vez mais pessoas esperarão menos tempo para ganhar um novo sopro de vida.

Transporte pirata é risco de morte

Correio Braziliense

Nos primeiro oito meses, mais de 36 mil brasileiros foram vítimas de acidentes nas rodovias do país. O número de mortes chegou a quase 4 mil., segundo dados da Confederação Nacional do Transporte

Nos primeiros oito meses deste ano, ocorreram 36.859, mais da metade de todos os acidentes registrados ao longo de 2022 nas rodovias federais do país. O saldo é trágico: 36.819 vítimas, 50.617 feridos e 3.711 mortes, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte. Os fatores são diversos, e vão desde o comportamento do condutor até as condições das estradas, entre eles, destacam-se a falta de atenção, desobediência à sinalização, velocidade acima do limite máximo, ingestão de bebidas alcoólicas e defeito mecânico ou na via.

Embora os dados disponíveis não foquem especificamente no transporte pirata, os especialistas alertam que a maioria desses veículos não oferecem qualquer segurança aos passageiros. No último domingo, um acidente com um ônibus, com 32 passageiros, que saiu do Maranhão com destino à capital federal, foi abordado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), na região administrativa de Ceilândia, no Distrito Federal.

Além de não ter autorização para fazer o transporte interestadual de passageiros, não dispunha seguro e os pneus estavam desgastados (carecas). O dono do veículo e seu filho foram presos em flagrante, no posto da PRF na BR-070. De acordo com a legislação, o veículo que apresenta essas e outras irregularidades e está lotado passageiros, deve ser escoltado ao terminal rodoviário mais próximo,a fim de que os passageiros possam seguir para o seu destino. No meio do trajeto, o motorista acelerou e o ônibus capotou. Sete pessoas morreram e 17 ficaram feridas.

Embora essa seja a norma adotada pelas autoridades, é preciso avaliar a sua eficácia. O que ocorreu no Distrito Federal não foi um episódio inédito. Quantos outros acidentes não se deram pelas mesmas causas? O acidente ocorreu no momento em que chovia muito. Água no asfalto e alta velocidade é uma combinação, quase sempre, provocadora de tragédias. Por que o veículo não ficou apreendido no posto da PRF e o proprietário bancaria a despesa com o aluguel de um ônibus seguro para levar os passageiros até a rodoviária mais próxima, uma vez que as agentes da PRF identificaram que os pneus estavam desgastados, o que significava às pessoas de dentro e de fora do ônibus?

Tão grave quanto o acidente, são as mortes e a insegurança que o transporte pirata causa a passageiros e a outros condutores no trânsito, é o fato de um ônibus irregular conseguir trafegar por quase 2 mil quilômetros — distância entre o Maranhão e a capital federal — sem ter sido barrado em outros postos da PRF. O episódio reforça a suspeita de que há um vácuo na fiscalização rodoviária, que impõe uma revisão da estratégia da corporação, a fim de garantir maior segurança no trânsito. Fora isso, as campanhas educativas aos condutores se tornaram iniciativas raras do poder público.

Da mesma forma que é importante aplicar com rigor a legislação, é essencial que as campanhas educativas sejam persistentes em todo o território nacional. Não basta responsabilizar os passageiros que não foram atentos ou, por dificuldade financeira, deixaram de exigir do motorista provas de que estariam seguros no trajeto, um exercício supletivo do dever das autoridades. É obrigação do Estado garantir a segurança e o bem-estar dos cidadãos.

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