domingo, 22 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Argentina sob Milei trará risco para o Brasil

O Globo

Força brasileira no mundo depende da estabilidade regional, ameaçada pelo favorito a chegar à Casa Rosada

Uma Argentina em apuros será sempre sinônimo de problema para o Brasil. Os vizinhos são nosso terceiro maior parceiro comercial e principal sócio no Mercosul. Os dois países dividem 1.260 quilômetros de fronteira. Dezenas de milhares de brasileiros vivem lá, dezenas de milhares de argentinos aqui. Laços históricos nos unem. Na geopolítica, a força do Brasil depende da estabilidade da região que lidera. Por isso a eleição presidencial de hoje é a mais preocupante em décadas. O favorito é Javier Milei, do partido A Liberdade Avança, um populista que se define como libertário. Não está descartada a hipótese de que ganhe no primeiro turno.

A revolta do eleitorado é compreensível. Quatro de dez argentinos vivem abaixo da linha da pobreza, a inflação deverá fechar o ano acima de 200%, e a política cambial, com variedades de dólar para todos os gostos, é motivo de piada. A inépcia dos governantes desde a redemocratização — de todos os matizes do peronismo até o fracasso do projeto liberal de Mauricio Macri — causou recessões em série e a sensação de que o país precisa de mudança radical. Na cabeça de muitos argentinos, em particular os eleitores de Milei, pior não pode ficar. É um engano. Se esse demagogo irresponsável ganhar hoje ou no segundo turno em novembro, a Argentina, no melhor cenário, desperdiçará quatro anos. No mais provável, acelerará o rumo da degradação.

Milei segue à risca o figurino de Jair Bolsonaro e Donald Trump. Em comum, vende a imagem de ser contra o sistema político — para ele, “a casta” — e transmite a ilusão de ter soluções simples para questões complexas. Suas ideias são uma caricatura do liberalismo, e sua plataforma é cheia de contradições. Promete dolarizar uma economia que sofre de baixa oferta de dólar (causa da desvalorização do peso). Diz que cortará subsídios de energia, mas afirma que isso não afetará “os bolsos dos argentinos”. Quer reduzir os ministérios de 18 para oito, mas manter o emprego dos funcionários públicos.

A postura contraditória tem como meta agradar a todos para chegar ao poder. Caso consiga, provavelmente continuará a espalhar confusão para justificar seus erros. É pouco provável que Milei consiga eleger uma maioria sólida no Congresso. Se tal quadro for confirmado, garantir a governabilidade será um desafio. Vale lembrar que Milei jamais teve cargo no Executivo. Sua experiência no Congresso se resume a dois anos como deputado.

Antes de depositar o voto na urna, os argentinos deveriam lembrar o que aconteceu no Brasil entre 2019 e 2022. Bolsonaro foi responsável pelo maior ataque ao Estado Democrático de Direito desde a redemocratização. Instituições e seus representantes foram esculachados. Mentiras repetidas incansavelmente erodiram a credibilidade do sistema eleitoral. Fanáticos invadiram as sedes dos três Poderes numa tentativa de dar um golpe de Estado.

Milei e Bolsonaro têm suas diferenças, e Argentina e Brasil têm históricos distintos nas relações entre os poderes civil e militar. Buenos Aires com Milei na Casa Rosada não seria uma cópia de Brasília com Bolsonaro no Planalto. No Brasil, a equipe econômica evitou desarranjos no governo passado. Ainda assim, a lição brasileira mostra que um populista na Presidência não costuma sair sem deixar um rastro de destruição. O caos da Argentina de hoje poderá ser uma fração do provocado por um eventual presidente Milei.

Falta de gestão prejudica metas de desenvolvimento da ONU para 2030

O Globo

Dificuldade de medir avanço faz despencar crença no cumprimento dos objetivos entre as empresas

Em setembro de 2015, as Nações Unidas lançaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano ambicioso com 17 metas voltadas a toda sorte de mazela humana. Na área social, o documento prevê erradicar a pobreza e a fome, fornecer água, saneamento ou educação de qualidade a todos. Na ambiental, defende o combate ao aquecimento global, a proteção de ecossistemas e a conservação de oceanos. Na econômica, estabelece como metas crescimento, construção de infraestrutura e fomento à inovação. O prazo de tudo é 2030.

Os objetivos parecem utópicos, mas isso não quer dizer que não deva haver esforços para alcançá-los. Embora o trabalho principal caiba a governos, a iniciativa privada é imprescindível. Por isso preocupam os resultados de uma pesquisa da ONU em parceria com a consultoria Accenture. Menos da metade (49%) de mais de 2.800 líderes empresariais ouvidos em 137 países, Brasil inclusive, acredita que o mundo alcançará as 17 metas até o final desta década. Há apenas um ano, eram 92%. Pelo visto, está claro para a maior parte que a agenda ficará no sonho.

A queda pronunciada é atribuída a fatores cíclicos e estruturais. A piora da conjuntura — com alta da inflação e guerras — parece ter desviado a atenção do setor privado para prioridades de curto prazo. Ao mesmo tempo, persistem dificuldades históricas, como a ausência de políticas públicas que incentivem mudanças nas empresas.O levantamento evidencia o descasamento na avaliação dos líderes empresariais. Oito de cada dez acreditam que a própria companhia contribui de forma positiva para os objetivos, mas apenas 62% pensam o mesmo a respeito do setor em que atuam e 48% sobre o setor privado como um todo. A diferença revela a estratégia de fazer pouco e jogar a culpa no vizinho. Nas reuniões de apresentação de resultados para acionistas em 2022, menções às metas aconteceram 175 vezes no grupo pesquisado, ante 277 no ano anterior.

Em larga medida, a Agenda 2030 padece do mesmo problema que as pautas ESG (sigla em inglês para governança ambiental, social e corporativa). Por falta de métricas confiáveis para medir o impacto de medidas, avanços e retrocessos, tudo fica suscetível a tentativas de maquiagem da realidade. Há até um termo para designar as declarações infundadas ou exageradas sobre os benefícios ambientais de medidas promovidas por empresas: greenwashing.

Para o setor privado, objetivos como o combate ao aquecimento global representam um desafio. Uma empresa pode adotar uma estratégia ambientalmente responsável, mesmo que isso represente perda financeira de curto prazo. Mas, se seus competidores não seguirem o mesmo caminho, a mudança de rumo representará perda de competitividade ou um risco para o negócio. Essa é uma das razões para governos criarem regras homogêneas para relatórios de impacto ambiental e outros correlatos. As metas de desenvolvimento da ONU estão sujeitas à deficiência mais trivial em gestão: faltam critérios objetivos consensuais para medi-las, portanto para cobrá-las.

Dois Estados

Folha de S. Paulo

Estratégia deve mirar solução perene do conflito entre israelenses e palestinos

"Um lar nacional para os judeus, no modo como em geral é entendido, era incompatível com as exigências dos nacionalistas árabes, enquanto as demandas do nacionalismo árabe, se admitidas, teriam tornado impossível cumprir o pleito dos judeus."

Não poderia ser mais atual a observação da chamada comissão Shaw, que em março de 1930 relatou ao monarca do Reino Unido as conclusões de investigação sobre uma revolta árabe na Palestina, em agosto do ano anterior.

Aquela porção de território, que se estendia do mar Mediterrâneo à margem ocidental do rio Jordão e do Egito ao Líbano, era um espólio do Império Otomano, esfacelado com a Primeira Guerra. Os britânicos governavam a região sob um mandato provisório da Liga das Nações, antecessora da ONU.

Desde o fim do século 19, o movimento sionista promovia a migração de famílias judias para a Palestina mediante aquisição de terras. A pressão populacional nutria o nacionalismo dos residentes árabes.

Como resposta a uma grande revolta árabe, os britânicos delinearam, no final da década de 1930, o primeiro plano de partição da Palestina em dois Estados soberanos.

A proposta decorria da conclusão, de resto óbvia, de que a melhor solução para estabilizar a região seria reconhecer o direito de árabes e judeus de estabelecerem as suas respectivas nações sem, no entanto, ceder às demandas maximalistas de cada lado.

Com base no mesmo diagnóstico, dez anos depois a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução que dividia a Palestina em duas nações.

A porção sob controle judaico crescera em relação ao plano britânico. O Holocausto de 6 milhões de judeus tornou ainda mais premente a obrigação do conjunto das nações para com a comunidade judaica e acelerou a migração de judeus para a região.

Os árabes da Palestina não aceitaram a partilha e, associados a exércitos de Egito, Jordânia e Síria, foram à guerra contra Israel tão logo a nação judaica declarou-se independente, em 1948.

Os israelenses rechaçaram a agressão, como também ocorreu em 1967 e 1973. Como espólio, Israel ocupa e coloniza territórios que não lhe pertencem pelo direito internacional, e centenas de milhares de palestinos viram-se compelidos a migrar, o que ajudou a sobrepovoar a Faixa de Gaza.

Uma nova janela promissora para a paz só se abriria no início dos anos 1990. Os acordos de Oslo retomaram os princípios da bipartição e proporcionaram aos árabes a fundação de sua primeira organização governamental, a Autoridade Nacional Palestina.

Dissidências radicalizadas de parte a parte, que se opõem à pacificação, puseram-se a dinamitar o processo. Não tiveram dificuldade de alcançar seu objetivo num contexto em que o dogmatismo religioso ganhava espaço na política.

Os massacres, estupros e sequestros promovidos pelos terroristas do Hamas em 7 de outubro deste 2023 e a retaliação assoberbante de Israel representam o ápice desse ciclo de radicalização.

A via do terror não levará os palestinos a desfecho além da destruição, da miséria e da falta de perspectivas de futuro. Israel não vai sumir do mapa como pregam os celerados do islamismo suicida. Vai continuar forte e vai reagir.

A marcha do governo israelense para a extrema direita também mostra seu limite. O prodigioso aparato de segurança não manterá protegida a população. Sem engajamento diplomático e político com o lado palestino, viver em Israel será mais arriscado.

Neste momento de urgência, a comunidade internacional deveria zelar para que os reféns não combatentes tomados pelo Hamas sejam devolvidos e para que Israel respeite as leis de guerra, poupe os civis e assegure o abastecimento de itens básicos em Gaza.

Mas as atenções estratégicas dos países comprometidos com a paz, como defende esta Folha, precisam estar voltadas para o restabelecimento tempestivo de canais de negociação que possam concretizar a solução de dois Estados.

O Brasil, que ora preside o Conselho de Segurança da ONU, dispõe de um ativo intangível, mas valoroso, para exibir aos contendores. Aqui as comunidades árabe e judaica convivem harmoniosamente e cooperam desde sempre.

Essa característica não apenas recomenda à diplomacia brasileira que adote a equidistância no conflito. Exige que condene a violência e apele à retomada do diálogo rumo à conciliação perene entre palestinos e israelenses.

A nova desordem mundial

O Estado de S. Paulo

Novos conflitos sinalizam que a ordem do pós-guerra morreu, mas a nova ainda não nasceu: ante a escalada da competição entre potências, mundo precisa de um novo modelo de cooperação

O pesadelo em Israel deveria ser um momento de clareza moral. Ele reacendeu debates sobre as ambivalências no Oriente Médio, especialmente sobre as ações e omissões de israelenses e palestinos. Mas as centenas de civis, sobretudo mulheres e crianças, executados, mutilados ou estuprados são um alerta de que, além dos matizes geopolíticos e “choques de civilizações”, há uma luta do bem contra o mal, da civilização contra a barbárie. Ainda assim, dias após a carnificina, o Conselho de Segurança da ONU – que deveria ser a polícia do mundo – foi incapaz de emitir uma manifestação – muito menos uma resolução – que deveria ter saído em minutos.

Em 1945, após a catástrofe das guerras mundiais, a clareza moral resplandeceu na forja das Nações Unidas “em uma unidade indestrutível de determinação – para encontrar um fim a todas as guerras”. Por quase 80 anos a ordem baseada em regras, supervisionada pela ONU, ajudou a evitar uma terceira guerra.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, dividiu essa história em três períodos. Primeiro, o mundo “bipolar” da rivalidade entre EUA e URSS. Depois, um breve período “unipolar”, com a hegemonia americana. O Conselho de Segurança lançou missões de paz para proteger populações contra atrocidades em massa e a globalização promoveu um período inaudito de prosperidade. Mas no século 21 sucederam-se os sinais do fim da ordem pós-guerra: o 11 de Setembro, a crise financeira, a anexação da Crimeia pela Rússia. Os malogros dos EUA no Iraque e no Afeganistão precipitaram uma retração isolacionista, enquanto uma Rússia revanchista e uma China expansionista desafiavam sua supremacia. O retorno da guerra à Europa lançou a pá de cal. Vivemos a terceira fase na periodização de Guterres: “O mundo ainda não é multipolar, é essencialmente caótico”.

A ideia de uma “nova guerra fria” não dá conta da interdependência econômica entre a China e o Ocidente. E mesmo no que há de similar, a rivalidade entre uma superpotência democrática e uma autocrática, os papéis se inverteram: a primeira se mostra errática na defesa da ordem liberal da qual foi artífice e a segunda busca dobrar essa ordem às suas conveniências despóticas.

Mas reduzir a nova ordem a uma “batalha entre a autocracia e a democracia” é simplista. Ela depende de um equilíbrio entre os vértices de um triângulo: o Ocidente global, o Oriente global e o Sul global. O Ocidente – EUA, Europa e seus aliados – quer preservar a ordem liberal que o Oriente – China, Rússia, Irã e seus aliados – quer desmantelar, revivendo o modelo que põe o Estado e a soberania nacional em primeiro lugar, à custa das liberdades individuais, direitos humanos e valores ditos universais, que denuncia como sendo armas retóricas do Ocidente para perpetuar seu imperialismo e a supremacia branca. O Sul global tenta se manter neutro, enquanto busca influência e representação para criar condições ao seu desenvolvimento.

Entre essas incertezas, “temos um multilateralismo sem dentes”, disse Guterres, “e quando tem dentes, como no Conselho de Segurança, não tem apetite para morder”.

Por ora, o que se vê é a coalescência de ordens “plurilaterais” ou “minilaterais” que buscam acomodar interesses, valores e poder. Mas esta década, na qual a Rússia busca asseverar sua força na Europa; o Irã, no Oriente Médio; e a China, na Ásia, provavelmente definirá a fisionomia do século 21. “Como em 1919, com a malograda criação da Liga das Nações, 1945 e o estabelecimento da ONU e 1989, quando muitos de nós acreditamos que o resto do mundo iria finalmente aceitar os três pilares de uma sociedade bem-sucedida (democracia liberal, economia de mercado e abertura à globalização), podemos errar, acertar ou ficar em algum lugar no meio”, avaliou o ex-premiê da Finlândia Alexander Stubb. “Devemos evitar os erros de 1919, aprender com o equilíbrio de poder estabelecido em 1945 e tornar a ordem liberal de 1989 universalmente atraente.” O sucesso ou fracasso nesse desafio determinará se o “caos” de que fala Guterres é a dor do parto de um novo corpo para a governança global ou o seu aborto.

Argentina leva sua crise às urnas

O Estado de S. Paulo

Seja qual for, o resultado das eleições não superará com um passe de mágica a debacle econômica nem aliviará a raiva da população sujeita à hiperinflação e dependente de benefícios sociais

A única certeza sobre as eleições presidenciais na Argentina, hoje, é que não haverá solução mágica para o colossal desmonte de sua economia nem um novo governo ileso a índices de baixíssima popularidade. A definição do eleitorado, seja neste domingo ou no segundo turno, em 19 de novembro, não alterará de imediato a exaustão dos argentinos com os sucessivos fracassos na condução do país pelo peronismo e pela centro-direita nos últimos 40 anos. A raiva expressa em votos de protesto nas primárias de agosto, sob os gritos de bordões destemperados, prenuncia mais desalento e aprofunda as incertezas que nem os cambistas conseguiam disfarçar na véspera do pleito.

A questão de fundo não se limita a quem será o escolhido pelo eleitorado, cuja decisão soberana há de ser devidamente respeitada. Envolve, sobretudo, a análise de como a Argentina chegou a ponto de ter como favoritos à Casa Rosada um peronista, Sergio Massa, que, com toda a pesada máquina assistencial do governo, se via dias antes do primeiro turno ameaçado por Javier Milei, um aventureiro que soube colher a insatisfação popular, sobretudo de jovens que jamais vivenciaram um período sem crise, para alavancar uma plataforma econômica tresloucada. A avaliação deve ir além e sopesar também a razão pela qual a centro-direita desvaneceu, sem encontrar meios para se apresentar como uma terceira via razoável ao eleitor.

Esses temas certamente terão sido remexidos em intermináveis conversas nos cafés de Buenos Aires e nos boliches das periferias. Há razões para crer que nenhum desses debates tenha sido concluído sem perspectivas sombrias. Da mesma forma avaliam empresários, analistas econômicos argentinos e estrangeiros e governos vizinhos, particularmente aturdidos com o potencial agravamento da crise quando as primeiras medidas forem anunciadas por quem se sentar no “sillón de Rivadávia” em 10 de dezembro.

A crise da Argentina figura entre as mais desafiadoras do mundo. Já era assim quando o Nobel de Economia Simon Kuznets alcunhou uma célebre frase nos anos 1970: “Há quatro tipos de países: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina”. Políticas equivocadas dizimaram o parque industrial, sem reconstruí-lo em outras bases, e elevaram o desemprego e o desalento. A equiparação do peso ao dólar nos anos 1990, uma alucinação adotada por lei, deixou como legado um rastro de destruição que ameaçou a própria ordem institucional. Medidas extemporâneas anunciadas por governos peronistas e radicais (centro-direita) circundaram o cerne da debacle, sem enfrentá-lo: a inflação e, consequentemente, o adequado ajuste nas contas públicas e a gestão eficaz das políticas monetária e cambial.

Não causa surpresa a astronômica insatisfação dos que arcam no cotidiano com uma inflação de mais de 100% ao ano e mais de 16 taxas de câmbio, sem esperança de melhoria de suas condições de renda nem perspectivas para o futuro. Muito menos dos que estão mergulhados entre os 40% mais pobres, dos excluídos do mercado formal de trabalho aos que dependem de subsídios do governo para comprar alimentos. O contexto econômico-social argentino muito explica a ascensão de uma liderança doidivanas contrária ao sistema e à classe política tradicional, como a história vem registrando há mais de um século. A surpresa surge quando os eleitores se deixam entorpecer por propostas falidas de antemão e chegam a aceitar, talvez sem se darem conta, o fim dos benefícios sociais que fazem diferença nos seus bolsos.

As eleições argentinas preocupam o governo brasileiro, como reconheceu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. É natural, dado o grau de interconexão das economias e os compromissos de ambos os países em diferentes esferas, inclusive a do respeito ao Estado Democrático de Direito, sob os guarda-chuvas do Mercosul e de acordos bilaterais. Qualquer que seja a escolha dos eleitores, será de interesse do Brasil manter o diálogo fluido com as autoridades de Buenos Aires e contribuir para que a crise na porta vizinha não se aprofunde ainda mais. Por mais lamentável que possa ser, a resposta das urnas é soberana.

Prêmio a quem desrespeita a lei

O Estado de S. Paulo

Anistia para quem não pagou multa por violar normas sanitárias na pandemia pune quem seguiu a lei

Numa próxima situação de emergência que imponha ao governo de São Paulo a necessidade de editar normas de comportamento para toda a população em prol do interesse coletivo – e novas crises virão, cedo ou tarde –, muitos paulistas sentir-se-ão desestimulados a cumpri-las, pois aqueles que o fizeram durante a pandemia de covid-19 acabam de ser tratados como otários pelo Palácio dos Bandeirantes e pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).

Na quarta-feira passada, a Alesp aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.245/2023, que, entre outras providências, concede anistia total das multas aplicadas aos cidadãos que violaram a legislação sanitária durante a pandemia. Ao chancelar a iniciativa do governador Tarcísio de Freitas de cancelar todas as multas, a Casa se posicionou frontalmente contra o interesse público. Uma lástima.

Pouco importam as motivações pessoais do governador ao propor essa anistia absurda e a dinâmica das relações entre o Executivo e o Legislativo em São Paulo. O fato é que ambos os Poderes passaram uma péssima mensagem para a sociedade ao premiarem o individualismo irresponsável. A mais nefasta dessas mensagens é que, a partir de agora, resta claro que comportamentos lesivos ao interesse coletivo não são repreensíveis pela administração pública em momentos de crise – ou, se são, decerto poderão ser relevados adiante.

Em defesa da anistia, o governo estadual argumentou que a aplicação das multas “não contribuiu para o desenvolvimento social e econômico do Estado”. Ora, não há multa no mundo que se preste a isso. Esse tipo de multa é uma sanção administrativa de caráter dissuasório, que, portanto, não visa à arrecadação. Basta dizer que se está falando de um montante de R$ 73 milhões em multas aplicadas, praticamente nada diante do orçamento de São Paulo.

Malgrado o PL 1.245 ter sido aprovado pela Alesp e, muito provavelmente, venha a ser sancionado pelo governador Tarcísio de Freitas, talvez seja cedo para os anistiados comemorarem. A questão decerto irá parar no Judiciário. Em primeiro lugar, porque a anistia foi concedida por meio de um “jabuti” convenientemente inserido num projeto de lei que versava sobre outra matéria. Em segundo lugar, e principalmente, porque se trata de um dispositivo inconstitucional.

A anistia, como dissemos neste espaço à época do envio do PL 1.245 à Alesp, “fere de morte o princípio da igualdade de todos perante a lei, viga mestra da República, ao dividir os cidadãos em duas classes: os anistiados e o resto, sobre os quais recai todo o peso do Estado sancionador” (ver Anistia absurda em São Paulo, de 18/8/2023).

Em meio a tanta confusão sobre os papéis e responsabilidades de cada um dos Poderes nestes tempos esquisitos por que passa o País, eis uma oportunidade de ouro para o Judiciário corrigir, sem receio de extrapolar seus limites constitucionais, um erro crasso cometido simultaneamente pelo Executivo e pelo Legislativo. É em situações como essa que o sistema de freios e contrapesos deve mostrar seu valor para a democracia.

A democracia na Argentina

Correio Braziliense

A Argentina tem enfrentado crises severas em mais de duas décadas e as consequências dos desastres econômicos e políticos têm pesado muito nesta eleição

Mais de 40 milhões de argentinos vão às urnas neste domingo, em meio a uma das mais graves crises econômicas enfrentadas pelo país. A inflação nos 12 meses terminados em setembro atingiu 138,3% e 40% da população estão na pobreza. Diante da possibilidade de o candidato de ultradireita Javier Milei vencer as eleições presidenciais, a atividade produtiva praticamente parou, pois, com a onda de incertezas, os agentes econômicos ficaram sem parâmetro para a formação dos preços de seus produtos. Nas últimas duas semanas, o dólar no mercado paralelo saltou de menos de 700 pesos para mais de 1.000 pesos, numa corrida da população por proteção. Além de Milei, estão bem posicionados nas pesquisas o peronista e atual ministro da Fazenda, Sérgio Massa, e Patrícia Bullrich, de direita, representante do Juntos pela Mudança.

A Argentina tem enfrentado crises severas em mais de duas décadas e as consequências dos desastres econômicos e políticos têm pesado muito nesta eleição. Em vez do bom senso, tem prevalecido a raiva e a revolta. Não serão esses sentimentos, porém, que resolverão todos os problemas que afligem os cidadãos. Optar pelo radicalismo, seja de que lado for, pode agravar o quadro já muito preocupante. O candidato de extrema-direita à Presidência da República, que se autointitula um anarcocapitalista, defende a dolarização da economia, o fechamento do Banco Central, a saída dos argentinos do Mercosul e o rompimento dos laços com a China.

Para que a dolarização da economia da Argentina fosse viável, seriam necessários, ao menos, US$ 60 bilhões, o que está longe de acontecer. O fechamento do BC e o desligamento do Mercosul dependem de apoio no Congresso. Tais limitações reforçam que o discurso radical que tem encantado, sobretudo, os jovens argentinos não passa de arroubos inconsistentes, que, se levados adiante, num movimento autoritário, só empurrariam o país para o precipício. É verdade que a desesperança, quando se olha o futuro e não se vê perspectivas, tende a falar alto. Mas os argentinos, em sua maioria, sabem da importância de se reconstruir a nação em bases sólidas, não por meio de promessas vazias e inconsequentes.

O Brasil tem enorme interesse que a Argentina escolha o caminho sem rupturas. Os dois países têm relações de mais de 200 anos, com momentos de rivalidade e de união. Foram adversários em guerras como a da Prata, aliados na Tríplice Aliança (Guerra do Paraguai), medem o tamanho da influência na América do Sul e são sócios no Mercosul. Do ponto de vista comercial, a Argentina é o terceiro mercado para os produtos brasileiros e o Brasil, o primeiro para as exportações argentinas. As transações entre as duas nações envolvem produtos industrializados, com média e alta tecnologia. A complementariedade das suas indústrias é enorme.

Mesmo com toda a crise enfrentada pela Argentina, a corrente de comércio com o Brasil somou US$ 13,6 bilhões no acumulado de janeiro a setembro deste ano. O saldo comercial, em favor dos brasileiros, atingiu US$ 4,5 bilhões, o dobro do observado em todo o ano de 2022 (US$ 2,2 bilhões). O comércio bilateral vem se recuperando depois de acumular queda de 60% entre 2011 e 2020, por causa dos problemas econômicos do país vizinho e da diminuição da ênfase do Brasil na integração regional. Não há como se falar em neoindustrialização sem que os dois países caminhem juntos e avancem no fortalecimento da América do Sul.

Portanto, que os argentinos façam uma boa escolha, que seja um espelho para a consolidação da democracia latino-americana. A região, em vários momentos, se rendeu ao autoritarismo e a experiências esdrúxulas de governo. O mundo vive um contexto muito complexo, em que o descompromisso com a liberdade de escolha e o desrespeito aos direitos humanos e aos avanços sociais e institucionais estão sendo normalizados. A Argentina deve dizer não aos retrocessos.

 

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