A diplomacia brasileira, como sabemos, esteve
no centro desse achado civilizatório. Ele deixou um grande legado que precisa
ser digerido, antropofagicamente, para ser atualizado, no Brasil e fora dele,
conservando a racionalidade, a moderação e o sentimento de alteridade que o
inspiraram. A obra conjunta da política e da diplomacia foi propor uma solução
pacífica de um problema antigo de e entre dois povos contrapostos por
interesses e também por contingências. Importa não perder de vista essa dupla
dimensão para compreender que o conflito mútuo foi criação histórica da
política de guerra e não um imperativo natural de um antagonismo “cultural”, ou
mesmo religioso.
O estado de Israel foi criado em 1948, no
meio do deserto, dentro daquela proposição de convivência. Apesar de
antecedentes conflitivos, de ter havido uma guerra de independência contra a
Grã-Bretanha e da presença, entre os judeus do novo Estado, de fundamentalismos
que se expressavam não só por palavras, mas também por gestos supremacistas,
nada de intrinsecamente belicoso havia naquele gesto de construção. Havia
dinheiro e vontade política para realizar um sonho secular e livrar o povo
judeu de novas perseguições e tragédias, como o Holocausto. O sentido positivo
desse marco reforçou-se na escolha da democracia como regime de organização
política, ainda que dentro de limites que não permitiram separação satisfatória
entre religião e política. O metabolismo político era uma usina de anticorpos
contra os riscos (reais) de perversão da solução diplomática por um
nacionalismo guerreiro.
O estado palestino independente não foi
criado e as razões históricas disso estão longe de se resumirem a um suposto
veto do sionismo, acatado por poderes políticos. Embora a não viabilização
interessasse de fato a Israel, nela parece ter tido influência mais decisiva a
oposição de importantes países árabes, que não apenas votaram contra a
resolução da ONU, como embaraçaram, na sequência, a concertação política que
seria necessária para tirar a proposta do papel entre tantas e distintas
vontades políticas presentes no mundo árabe. A razão explícita da oposição era
defender a integridade do território palestino que a solução da ONU teria
violentado. Mas política e diplomacia existem justamente para que argumentos
assim, esgrimidos por contendores, não exponham o mundo a guerras de fim de
mundo. Estados árabes contestaram essa razão política com argumentos que não
incluíam razões de estado que, no entanto, cobravam pedágio dos seus
estadistas. Incomodava a essa lógica o espectro da autonomia política de um
povo que, sendo parte das populações desses países, poderia, se organizado em
estado, reivindicar direitos para seus iguais em tais países e desestabilizar
seus regimes - em geral, ditaduras. A OLP foi seguimento da saga de um povo
que, além de seguir sem teto próprio, sofre com tiranias políticas. Não à toa,
além do inimigo judeu e seus aliados, colecionou adversários entre os árabes.
De tudo o que ocorreu na sequência das
décadas – belicismo, fundamentalismo e racismo penetrando aos poucos nas
estruturas jovens do estado de Israel e minando sua democracia política, bem
como o terrorismo que se espalhou como praga no mundo árabe onde, em geral,
estava ausente a democracia - nada pode ser posto na conta do achado histórico
da aliança entre política e diplomacia, mas no da subordinação de ambas a
outras lógicas que se tornaram hegemônicas em diversos países, alguns de muito
peso, para bem além do Oriente Médio. Fundamentalismos foram estimulados e
manipulados por elites guardiânicas e oligarquias endógenas, bem como apoiados
e armados por agentes da guerra fria.
No contexto da região nunca faltaram, como
não faltam hoje, moderados e extremistas nos dois lados do conflito básico
entre judeus e árabes, assim como nas polarizações em torno dos palestinos. Por
um lado, atitudes de líderes e partidos moderados (democratas ou não) na política
e na guerra, como Golda Meir - cuja firmeza no contexto de guerra com países
árabes não impedia seu esforço político para uma convivência pacifica
entre judeus e árabes em Israel -, a dupla Rabin-Arafat líder de um
processo de entendimento que desaguou nos acordos de paz de Oslo e mesmo o
realismo pragmático de Anwar Sadat e Menachem Begin, o desse último causando
cisma no Likud (que agregou, até dado momento, a direita israelense),
dissidência da qual é filhote disruptivo o recente figurino de Netanyahu e de
seus ministros fundamentalistas. Em simétrica contestação das razões da
política prudencial sempre esteve, ao lado de antigos e novos extremistas
radicais da direita israelense, o culto ao terrorismo que se radicalizou no
Hamas, no Hezbollah e outros grupos dessa mesma extração miliciana e que
procura, obstinadamente, desmoralizar a política e os atores que nela buscam
solução para os conflitos.
Aqui cabe uma digressão talvez impertinente,
mas irresistível, para lembrar das Brigadas Vermelhas, organização maoísta que,
em 1978, sequestrou e assassinou o primeiro-ministro italiano Aldo Moro para
impedir um acordo histórico entre a Democracia Cristã e o PCI, vitualmente
destinado – caso consumado - a impor imensa derrota política à então guerra
fria entre capitalismo e comunismo. Na época houve analistas que tentavam dar
uma explicação geopolítica "racional" para o terrorismo. Os próprios
brigadistas tratavam o PCI e os partidos da esquerda europeia em geral de modo
semelhante ao modo pelo qual o Hamas trata hoje a rival Fatah: como traidora da
sua causa. As diferenças não estão só nas duas causas, a revolução proletária e
a nacional palestina. Também é enorme a distinção entre os contextos, os perfis
sociais dos dois grupos e entre as escalas dos morticínios que
provocaram. Mas a memória foi acionada na direção das Brigadas porque as
afinidades de gramática política não querem calar. A viagem no tempo e no
espaço serve, quando nada, para demonstrar, pela enésima vez, que terrorismo
não é produto cultural de sociedades “degeneradas”, mas da imoderação, uma
degeneração da política que ronda o cotidiano de toda sociedade moderna, não só
como fato externo.
Voltemos ao Oriente Médio. A digressão não
pretendeu nivelar a grandeza política do compromisso histórico italiano ao
escopo político mais limitado do acordo que vem sendo tentado, entre Israel e
Arábia Saudita, sob os auspícios dos EUA e a oposição do Irã. Pretendeu
mostrar, primeiro, que a gramática da antipolítica é inclemente perante
qualquer movimento de paz, ainda que precário. Segundo, que uma iniciativa que
ignora, quase tanto quanto Netanyahu (embora se abstenha de chancela aos seus
métodos), o destino dos palestinos, enfraquece sobremaneira a liderança
moderada da Autoridade Palestina e a expõe, na Cisjordânia, a derrotas
políticas para o Hamas, potencialmente tão funestas quanto a que sofreu na
faixa de Gaza. Se a gramática terrorista arrisca tudo e se isola quando
mata um político como Aldo Moro, pode ter a veleidade de obter apoio externo
para atos terroristas contra governos negativos como o de Netanyahu ou contra
políticas de pacificação de limitado escopo.
Um dos traços mais miseráveis do atual
cenário daquela região é justamente a virtual desmoralização de líderes e
partidos moderados, que aparece como risco iminente a cada êxito temporário dos
extremismos. É o que se dá neste exato momento, prometendo se estender por
semanas ou meses. As chances de apelo imediato a antigas correntes moderadas do
trabalhismo israelense, à própria Fatah, às instituições democráticas de Israel
ou à Autoridade Palestina parecem estar entre brumas, sob as quais pode se
esconder, na melhor das hipóteses, lenta recuperação e, na mais provável (ao
menos no caso palestino), desvanecimento. Além dos preços humanos da operação
em si, nada a celebrar pode resultar diretamente da eventual destruição militar
do Hamas, por mais que ela seja vista, com razão, como necessária no presente.
Mesmo a antevisão do fracasso político de Netanyahu em Israel é alívio que se
faz acompanhar de incerteza quanto ao que o sucederá, com a antipolítica não
deixando se ser, como em toda parte onde a guerra se instala, uma candidata.
Problemas religiosos, culturais, étnicos,
raciais existem e são fontes de guerras e outras violências. Instituições
democráticas e atitude política moderada existem, inclusive, para buscar
soluções pacíficas para eles. Ditaduras e extremismos existem para perenizar,
agravar e manipular essas questões e métodos, em favor de fins políticos e
materiais imediatos, quase sempre dissimulados como ideologias.
A aliança trágica, no século passado, entre
guerra fria e nacionalismos encaixotou o vislumbre da ONU e deixou, como
fantasma insepulto, um rastro macabro, que volta hoje a nos assombrar. Não há
desafio mais importante e atual do que impedir tal aliança entre guerra e
antipolítica de se restabelecer como ordem mundial. Para paz não ser palavra
vã, a tradução do desafio em objetivo positivo é a constituição de outra e
mesma aliança (outra porque nova nos termos do mundo atual; mesma porque
reitera o sentido prudencial da política na lida com experiências trágicas) que
reate laços entre política e diplomacia para dissuadir lógicas soberanistas do
desejo primário de moldar as relações internacionais.
Se há (ou se pode haver), alternativa à ONU
como centro de operações dessa missão civilizatória, essa alternativa é, até
aqui, invisível. Até porque a clarividência contemporânea e a sabedoria prática
que a resolução de 1947 continua a irradiar é cabal evidência da estupidez de
"realistas" que alardeiam a impotência, ou anacronia, da agência. Em
vez de chorar de olhos fechados para não desmoronar, existencialmente, diante
das cenas infames, as sociedades democráticas do mundo (aqui não há restrição
do campo de ação política a certo grupo de atores, mas reconhecimento do papel
crucial que cabe às democracias) precisam abrir bem os olhos para confiar
governos a quem possa praticar o gesto cosmopolita de tirar do chão e elevar ao
horizonte comum a generosa e atualíssima mensagem de 1947.
Nada disso é promessa, sequer caminho. Tudo
são desejos, valores, vislumbres, sem os quais morremos. No curto prazo o que
temos é, de fato, o pior dos mundos. Nele é inútil procurar razões explicativas
para os fatos, porque se razão há nos atos que os geram é razão incipiente,
serva dos piores instintos. Nele cabe, aos políticos e diplomatas
práticos, encontrar modos de reduzir perdas e danos humanos. Nele resta, a
sociedades e indivíduos civilizados, manifestar repúdio aos senhores e também aos
profetas da guerra, assim como solidariedade incondicional a todas as suas
vítimas, sem ressalvas ou exceções.
Apesar da impossibilidade de se chegar a
soluções perenes de e no curto prazo (pois não existem), a razão humana que
ilumina o papel civilizador da política - e da diplomacia, sua aliada contra a
guerra - pode e deve estender seu olhar e poderes ao médio prazo, terreno, por
excelência, da mediação. Se vale aqui o alerta de Keynes de que a longo prazo
todos estaremos mortos, vale também pensar que, sem um médio prazo, poderemos
morrer no curto e não só em Gaza.
É sobre o médio prazo que podem incidir
feixes e faixas de luzes potentes para encarar, com dignidade, e reformar, com
convicção e esperança, a Gaza nossa de cada dia. Um atributo da boa razão política
- que a faz melhor que razões incipientes - é distinguir o impossível do que é
possível a um poder restrito, por definição, à realidade. Discernimento
imprescindível para renunciar, sem remorsos, à luta inglória no primeiro campo
e para vencer qualquer sentimento de impotência no seu agir sobre o segundo.
*Cientista Político e professor da Ufba.
Excelente! Ótimo histórico sobre as últimas décadas, e todo o contexto em que se sucedem crimes no Oriente Médio, praticados por todos os envolvidos na luta por territórios na região há décadas, que já resultaram em tantas mortes violentas e todas as vinganças que os envolvidos prometem e cumprem.
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