Por Ruan de Sousa Gabriel / O Globo
Com muito a dizer e ainda relido, escritor
italiano tem cem anos de nascimento celebrados com reedições, audiolivros e
publicação de obras até então inéditas no Brasil
Numa conversa com estudantes em maio de 1983,
o escritor Italo Calvino (1923-1985) ouviu a seguinte pergunta: “Você tem uma
arma secreta para alcançar o sucesso?”. A pergunta fazia sentido. O italiano
era celebraddiga o em todo o planeta por joias literárias como “Cidades
invisíveis” e “Se um viajante numa noite de inverno”. “Não é questão de
sucesso”, respondeu o escritor, que completaria cem anos neste dia 15 de
outubro. “Penso sempre em escrever algo que tenha um significado e que se
insira naquilo que é o desenvolvimento da literatura moderna”, disse. Conhecido
pela modéstia, talvez ele não tivesse (ou revelasse) o segredo do sucesso, mas
sem dúvida contribuiu um bocado para o desenvolvimento da literatura moderna.
Calvino é um clássico, de acordo com as
definições que ele próprio apresentou no ensaio “Por que ler os clássicos”
(1981). Deixou ali duas máximas inquestionáveis: “Um clássico é um livro que
nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” e “Os clássicos são
aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo...’”.
Calvino, ele mesmo, certamente ainda tem muito a dizer — e ser relido.
E nada como um centenário para incentivar a releitura de um autor. Nessas efemérides, reedições costumam se multiplicar pelas livrarias. A Companhia das Letras, que edita a obra completa do italiano no país, já lançou três: “Todas as cosmicômicas”, “Se um viajante numa noite de inverno” e “Por que ler os clássicos”. E promete mais uma para 2024: a trilogia “Os nossos antepassados” (formada pelos romances “O visconde partido ao meio”, “O barão nas árvores” e “O cavaleiro inexistente”).
O fã Antônio Fagundes
Amanhã, saem dois audiolivros: “As cidades
invisíveis” e “Se um viajante...”, narrados respectivamente por Dan Stulbach e
Antônio Fagundes (que é leitor de Calvino desde o início da publicação do autor
no Brasil, na década de 1980).
— Conheci Calvino através da trilogia “Os
nossos antepassados”. Mesmo que ele não tivesse escrito mais nada, para mim, já
seria um clássico — afirma Fagundes. — É como ele mesmo disse: “Ler os
clássicos é melhor do que não ler os clássicos”.
Mas não é só com reedições que se comemora o
centenário de um clássico. Quatro títulos do italiano até agora inéditos no
Brasil acabam de ser publicados: “Nasci na América...”, reunião de 101
entrevistas do autor (que nasceu em Santiago de Las Vegas, em Cuba, e viveu na
Itália a partir dos 2 anos); “Um otimista na América” (relatos de sua temporada
nos Estados Unidos, entre 1959 e 1960, quando se apaixonou por Nova York, ouviu
discursos de Martin Luther King Jr. e não viu graça nenhuma nos beatniks); e
duas antologias de contos: “Por último vem o corvo” (1949) e “A entrada na
guerra” (1954). Ambas recuperam a experiência do autor durante a Segunda Guerra
Mundial, quando se engajou na Resistência italiana e, depois, no Partido
Comunista.
Autobiográficas, as histórias de “A entrada
na guerra” expressam uma crítica moral ao fascismo. Calvino denuncia o desprezo
dos patriotas pelos refugiados, a infantilidade de Mussolini e a vulgaridade de
seus seguidores.
Professor da USP e tradutor do italiano,
Maurício Santana Dias explica que esses contos memorialísticos pertencem à
primeira fase de autor, mais realista, antes que ele abraçasse o
experimentalismo que resultou em obras-primas como “Se um viajante...”, romance
que é protagonizado por um “Leitor” à procura de um livro que tem dez começos
diferentes, um de cada gênero literário. As narrativas da juventude, diz o especialista,
já davam indícios dos mundos fabulosos que ele seria capaz de criar.
— No conto “Por último vem o corvo” aparece
um jovenzinho com uma pontaria absurda. A atmosfera não chega a ser fantástica,
mas há um estranhamento, um tom lúdico — afirma o professor, que traduziu e
organizou uma seleta de cartas do italiano, a ser publicada no ano que vem. —
Há uma motivação política por trás dessa primeira ficção, que é mostrar a
miséria do fascismo. Mas Calvino escolhe narrar da perspectiva de jovens, de
adolescentes, o que permite um distanciamento crítico e uma ironia muito
autoconsciente, que não atrapalham a fruição do leitor.
Na USP, Dias oferece uma disciplina
intitulada “Italo Calvino e outros narradores do século XX”, bastante procurada
pelos alunos.
Clareza e erudição
O italiano também está entre os preferidos de
escritores brasileiros contemporâneos. O professor Uzzi-Tuzzi, personagem de
“Se um viajante...”, por exemplo, faz até uma ponta no romance “O vilarejo”, de
Raphael Montes. Autora de “A verdadeira história do alfabeto”, Noemi Jaffe
tampouco esconde a influência de Calvino. Ela descobriu o escritor nos anos
1980, quando topou com a trilogia “Os nossos antepassados” (elogiada com fervor
por todos ouvidos para esta reportagem). “O visconde partido ao meio” é sobre
um aristocrata que é metade bom e metade ruim (e inteiramente insuportável). Em
“O barão nas árvores”, um outro aristocrata escolhe observar a vida longe do
chão, da copa de carvalhos, olmos e oliveiras. E “O cavaleiro inexistente” é
protagonizado por uma armadura vazia (sem ninguém dentro), que, não obstante,
comporta-se como soldado exemplar.
— Você lê “O cavaleiro inexistente” e morre
de rir. É uma alegoria daquelas pessoas que não têm existência própria, mas
vivem para a obediência e a submissão. Em outro livro que eu adoro, “O dia de
um escrutinador”, sobre um militante comunista que fiscaliza uma eleição, fica
evidente o quanto Calvino combatia a obediência cega, que caracterizou o regime
de Mussolini — diz Noemi. — Ele é um clássico por definição, capaz de fazer uma
combinação muito rara de clareza e erudição e de levantar questões políticas
recorrendo ao absurdo e à imaginação, como se escrevesse contos de fadas.
O escritor Ricardo Lísias, que vem relendo
Calvino e compartilhando suas impressões nas redes sociais, descreve o italiano
como um “clássico incontornável”. Ele lembra que as “Seis propostas para o
próximo milênio” (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e
consistência), anunciadas pelo autor em 1984, continuam na ordem no dia. E
destaca a habilidade do italiano de conjugar lucidez e humor.
— Calvino tem textos muito engraçados, mas é
um humor ácido. Você lê e pensa: “como eu posso estar rindo disso?”. Causa um
certo embaraço, que leva à reflexão. Às vezes, o humor muito ácido pode
despolitizar, mas isso não acontece em Calvino. Ele faz graça com profundidade
— diz o autor de “Divórcio”. — Por exemplo: “Marcovaldo” é um romance sobre um
operário que só tem olhos para a natureza. Ele é um sujeito completamente
avoado, mas agora, com ondas históricas de calor no inverno, parece que ele
tinha razão.
Natureza e civilização
Certa vez o italiano escreveu que um clássico
“tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo
tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”.
Autora de “Cara paz” (Nós, 2023), a italiana
Lisa Ginzburg acredita que Calvino seria o melhor candidato para dar tratamento
literário ao “barulho de fundo” mais ensurdecedor de nossos dias: a “angústia”
causada pelas mudanças climáticas. Textos de juventude, como “A formiga
argentina” e os contos de “Por último vem o corvo”, mostram um autor consciente
do “poder absoluto” da natureza, diz ela.
Calvino era filho de um agrônomo e de uma
botânica e chegou a iniciar o curso de agronomia. “A salvação da natureza é uma
questão da civilização”, afirmou em uma entrevista.
Lisa gosta sobretudo das primeiras obras de
Calvino, escritas sob o impacto da guerra, nas quais irrompe o lado mais
“emocional” do autor, que depois passou a escrever de “cabeça fria” e
desenvolveu uma “capacidade quase geométrica” de fabulação literária.
Ela o chama de “o mais lúcido” dos escritores
italianos. E fala com propriedade, pois nasceu em uma família conhecida pela
lucidez: é filha do historiador Carlo Ginzburg e neta da romancista Natalia
Ginzburg, que trabalhou com Calvino na editora Einaudi. Ainda menina, ela o
encontrou algumas vezes na casa da avó.
— Calvino era muito tímido. Mas as crianças amam pessoas tímidas — recorda ela, hoje com 56 anos. — Era muito agradável e íntegro. Nunca quis o sucesso fácil. Tenho a impressão de que escolhia muito bem o que amava.
Parabéns, Gilvan, por ter republicado este artigo sobre Italo Calvino.
ResponderExcluirMuito bom o artigo.
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