sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Vera Magalhães - A Constituição e a anomia

O Globo

Instituições não servem de obstáculo a que grupos criminosos empreendam ação tão escancarada como assassinato dos médicos

Enquanto os Poderes se digladiam para ver quem fala por último no momento em que a Constituição de 1988 completa 35 anos, o risco concreto — escancarado na cara de todos em eventos trágicos como o assassinato dos três ortopedistas no Rio de Janeiro — é que, aos poucos, nenhum deles seja mais respeitado, e a anomia social (e estatal) se instale no Brasil.

Quem cunhou o conceito de anomia social foi o sociólogo Émile Durkheim, que o descreveu como ausência de regras para guiar o comportamento de indivíduos numa sociedade em momentos de grandes mudanças econômicas, sociais ou políticas.

O que se presencia no Rio de Janeiro e na Bahia, de forma aguda, mas no país todo de modo crônico, em relação ao avanço das diferentes organizações criminosas, sejam elas do tráfico de drogas ou das milícias, é um avanço cada vez mais ousado sobre territórios e também sobre as instituições, sem parecer que haja qualquer preocupação com a capacidade de o Estado lhes fazer frente.

A discussão que tomou conta dos noticiários, das redes sociais e dos plenários das Casas Legislativas — sobre se a execução dos médicos foi um crime político — nasce de uma preocupação menor e equivocada. Nada indica que a motivação para a barbárie tenha sido o fato de uma das vítimas ser o irmão da deputada Sâmia Bomfim. Mas isso não tira do crime seu caráter político na acepção mais preocupante: de as instituições não servirem de obstáculo, de anteparo para que grupos criminosos decidam empreender uma ação tão escancarada. O temor do poder de contenção do Estado foi abolido, o que nos leva perigosamente a flertar com a anomia.

Diante de algo tão explícito e violento, calhamaços como o recém-lançado programa de combate às organizações criminosas já nascem superados. O que se viu ali foi uma compilação de medidas de caráter genérico, lançadas justamente a partir da necessidade de dar uma resposta à crítica — que ganhou mais força com o favoritismo de Flávio Dino para ser nomeado ao Supremo Tribunal Federal — à inação do governo federal na segurança pública.

O caráter emergencial ficou explícito pelo fato de as medidas concretas anunciadas para a Bahia e para o Rio terem sido questionadas e logo ter havido um recuo. E porque, em relação às propostas ditas estruturantes, se prometeu o detalhamento do plano executivo em alguns meses. Dias depois, a demonstração de descaso completo das facções com a tentativa de resposta cobre de inocuidade essa mise-en-scène.

Estudos recentes mostram que as diferentes organizações criminosas se cartelizam rapidamente, diversificam sua atuação em diferentes atividades econômicas com ares de legalidade, pulverizam e internacionalizam sua operação financeira, de modo a dificultar o follow the money, e estão léguas à frente dos serviços policiais e militares de inteligência.

Mais grave que isso é a crescente presença de representantes de milícias e grupos de operação do narcotráfico financiando candidaturas eleitorais e mandatos em todos os níveis: municipais, estaduais e federais. Nos Legislativos e nos Executivos.

O assunto é tratado à boca pequena por lideranças comunitárias e partidárias e é do conhecimento das polícias. Até os jornalistas sabem quais seriam os partidos infiltrados de alguma maneira pelo crime, mas o jogo segue como se não houvesse nada de errado.

Diante desse nível de contaminação das instituições pelo crime organizado, como dissociar a chacina do quiosque da Barra de uma grave e ainda silenciosa crise de legitimidade da política brasileira?

Confrontar o jogo de estica e puxa que Legislativo e Judiciário fazem pela última palavra com o que corre solto nas comunidades, nas cidades e nos estados brasileiros em termos de omissão estatal diante do crime mostra que o buraco é bem mais embaixo e que a Constituição já não vigora em sua plenitude em todo o território nacional.

 

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