sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Vera Magalhães - Governo, Lira e a lógica do 'quem não faz, leva'

O Globo

O que a dinâmica da 'lirodependência' no Congresso diz a respeito da incapacidade do Executivo de propor um projeto ao país?

O governo capitulou, uma vez mais, à lista dos desejos de Arthur Lira. Mais rápido que a Amazon, o presidente da Câmara entregou o projeto dos fundos em tempo recorde depois de assegurar a presidência da Caixa e negociar as vice-presidências. Como, diga-se, estava acertado desde a reforma ministerial.

O que isso diz a respeito do apetite do Centrão, muito temos analisado. Mas o que a dinâmica da lirodependência mostra a respeito da capacidade do Executivo de ter um projeto para o país? A resposta é em tudo mais preocupante para Lula que ter de fazer um Pix para o Congresso com mais frequência do que a aprovação tranquila da PEC da Transição permitia antever.

Preocupante porque mostra que Lula e seus muitos ministros não têm sido capazes de envolver a sociedade — e o Parlamento, que, mesmo famélico, de qualquer maneira espelha essa sociedade — na discussão de um conjunto de propostas para o país.

Isso ajuda a explicar por que, mesmo com a melhora objetiva de quase todos os indicadores econômicos, da inflação aos juros, passando pelo emprego, a percepção do eleitorado seja de decepção, e a popularidade do presidente e do governo estejam em lenta regressão.

A ideia de que o Brasil aposentaria o teto de gastos, criaria um novo marco fiscal, praticaria justiça social por meio de um Bolsa Família recomposto e de uma política permanente de valorização do salário mínimo e voltaria a investir em grandes projetos estruturantes deu o empuxo inicial do governo.

Ao bradar contra o Banco Central e pintar seu presidente, Roberto Campos Neto, como vilão dos juros altos contra a prosperidade lulista, o presidente entendeu perfeitamente que necessitava dessa narrativa para dar sentido à inauguração de seu mandato como a busca pela bonança perdida sob Bolsonaro.

Funcionou. Fernando Haddad emergiu como o ministro das pautas virtuosas, teve êxito em convencer o Congresso e o mercado da viabilidade de seu desenho de política fiscal, ajudou a impulsionar uma antes desacreditada reforma tributária e venceu o fogo amigo do PT raiz.

Mas aí o segundo semestre veio com a parte mais difícil: juntar uns dinheiros, aqui e ali, para impedir o arcabouço fiscal de virar um calabouço de credibilidade e popularidade. E até aqui essa engrenagem está amarrada, condicionada às intempéries da agenda pessoal de Lira.

A saída de cena de Lula por um mês para a recuperação da cirurgia levou a agenda federal a um estado de catalepsia, de que só foi tirada agora graças a mais uma concessão explícita aos caprichos do presidente da Câmara.

Não é só o fato de o Centrão ter uma fome de anteontem que explica a permanência dessa dinâmica, é justamente o fato de o governo não ter mais muitos projetos a mostrar para seduzir primeiro a sociedade, depois conseguir cabalar apoio congressual a preços mais módicos.

PAC, Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, todos esses foram remakes de filmes antigos, que tiveram, nesse relançamento, menos impacto que os originais. Mesmo uma ideia nova e antenada com o momento atual, como o Desenrola, tem alcance ainda reduzido, incapaz de funcionar como catalisador de apoio popular e símbolo para campanhas futuras.

Se continuar vivendo do passado ou cruzando os dedos para Haddad zerar o déficit no ano que vem e o crescimento se mostrar parrudinho, Lula estará distante daquele encantador de serpentes de outrora, que tinha 80% de aprovação e elegia postes.

Sem um projeto de país que lhe permita retomar parte do eleitorado de Bolsonaro, o presidente terá de continuar a acender velas no altar de Lira ou de quem lhe suceder. Afinal, na política não existe vácuo e, como no futebol, quem não faz, leva. Quatro anos dessa dinâmica não são o sonho reeleitoral de ninguém.


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