Folha de S. Paulo
Mundo parece dizer que haverá uma taxa de
matança e mutilação aceitável ou inevitável
Neste ano, o povo
de Gaza teve energia elétrica por 13 horas por dia, em média. A informação
é do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na
sigla em inglês), que recebe os dados da Companhia de Distribuição de
Eletricidade de Gaza.
Este ano, pois, está mais ou menos na média
de 12 a 13 horas diárias de eletricidade disponível desde 2019. Em 2017 e 2018,
foram apenas 7 horas por dia.
Gaza tem a eletricidade que Israel permite, afora uma produção negligenciável de energia solar e algum contrabando mínimo de combustível para geradores. Além dos túneis do Hamas, há contrabando por túneis "privados", por assim dizer, de gente que quer driblar Israel ou não pagar impostos à ditadura islâmica. Mas é um nada no deserto de suprimentos.
Há geradores em hospitais e em alguns outros
serviços de utilidade pública. Para produzir energia, Gaza tem apenas uma usina
termelétrica, que depende de diesel importado de Israel para funcionar. Desde
2019, essa usina tem produzido de 15% a 17% da necessidade de energia elétrica
dessa tripa de terra onde estão confinados 2,2 milhões de palestinos. Linhas de
transmissão de Israel fornecem outros 27% a 28% da necessidade. O
resto falta.
Do Egito veio a maior parte da gasolina e do
diesel importados por Gaza em 2022 (91%). Os demais 9%, de Israel. Mas de lá
não vai eletricidade para o vizinho desde 2018, pelo que se vê no relatório da
OCHA.
Nos combates e nas ocupações de Gaza deste
século, a situação já foi até pior. Qual será a consequência da guerra ainda
mais bestial que se prevê para este 2023?
Estamos falando apenas de energia. Há ainda a
falta de comida. Gaza costumava ser autossuficiente em produtos frescos, mas
depende de importação para tudo mais de comer. A falta de remédios e materiais
hospitalares vai piorar. Os números da energia são, pois, um exemplo quase
asséptico da desgraça.
Israel se prepara para algum
ataque, não se sabe como, quando e de qual duração. Ainda mobiliza
tropas e junta material. Por quanto tempo durará o bloqueio
total, somando preparativos, combates e "pacificação" do
cemitério? Por ora, se trata de uma mistura de sítio medieval com bombardeio
arrasa-quarteirões da Segunda Guerra. Deve vir coisa ainda pior.
Afora organizações como Médicos Sem
Fronteiras, que nesta quinta-feira lançou um comunicado irado a respeito, e
Cruz Vermelha/Crescente Vermelho, entre outras instituições humanitárias, quase
ninguém com poder ou influência prática fala do assunto. A "comunidade
internacional" e o "Ocidente" vão tolerar o garrote ir até
quando?
Há três passagens terrestres operacionais
para fora de Gaza, duas para Israel, uma para o Egito. O governo do Egito tem
pedido que a ajuda para Gaza seja enviada para seu aeroporto de El Arish, a 52
km da passagem de Rafah, no sul de Gaza. E mais não diz. O que vai fazer com os
materiais?
O Egito
tem acordos com Israel de como administrar o bloqueio de Gaza. Vai
furar o pacto? Vai deixar passar caminhões? Israel vai deixar ou fazer vista
grossa? Ou vai bombardear tudo até o pó no lado palestino de Rafah?
Os governos do mundo com poder parecem dar de
barato que haverá em Gaza uma certa taxa de morticínio, mutilação, fome e
outros vetores do apocalipse: um nível de massacre aceitável ou inevitável,
digamos. Ao menos em público, tem sido assim. Se há negociações para criar
algum alívio, disso não há notícia, afora rumores. Para Israel, que quer varrer
o Hamas da terra, não faz sentido militar permitir ajuda humanitária enquanto
não tiver controle da distribuição de comida, combustível, remédio ou mesmo
água em Gaza.
É um horror sem perspectiva de fim.
Só uma observação: os governos do mundo, não, os governos do Ocidente coletivo. Diplomatas de formação defendem cessar-fogo e início de negociações: solução 2 estados. Há notícias - não apenas rumores, ministros de RE, Ministros de Estado e Presidentes têm conversado - de que o grupo Brics - países árabes, Rússia, Brasil, Índia; China não se manifestou, o fará - elabora proposta de paz, a ser discutida. Na ONU. Com aval da ONU, primeiro no CS, em seguida na AG. Líderes sem formação diplomática, não conseguem concertação, demonstram apoio a Israel, envio de recursos - fora os 2bi já sabidos anuais - e armas. US recuaram e pediram recuo também na evacuação de civis em 24h. Nenhum dos líderes ocidentais, nenhum dos ministros de RE, que deveriam ser diplomatas, apresentam esboços ou propostas de paz. São tecnocratas da política 'shallow', como se lê em mídias não alinhadas ao Ocidente coletivo. Diplomacia é o que falta. A formação diplomática desabou espantosamente no Ocidente coletivo. Há vácuo de diplomacia no quadro atual das RE. É uma linha fundamental de pesquisa, porque tem o potencial de mostrar a feição belicosa que tomou o mundo nas últimas décadas.
ResponderExcluirConcordo integralmente com o comentarista!
ResponderExcluirPois é.
ResponderExcluirEu, Maria, escrevi o primeiro comentário e também concordo com o comentarista. Quis apenas apontar para o fato de que não são 'todos os governos do mundo com poder' que 'dão de barato' o morticínio. A não ser que ele se refira aos governos dos US e da EU; mas o 'poder' está se movendo: China já registrou sua posição e não se pode dizer que não tenha poder. No mais, concordo inteiramente com Torres freire.
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