quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Wilson Gomes* - Por que Lula e a esquerda não estão alinhados na questão Israel-Palestina?

Folha de S. Paulo

Entre a convicção do grupo e a posição oficial do presidente, desta vez o petista de fé parece preferir manter a sua crença

Diz-se frequentemente que o grosso da esquerda brasileira tende a acompanhar diligentemente a posição de Lula sobre qualquer questão. Não é que a esquerda seja monolítica, ao contrário. Há verdade no ditado segundo o qual a esquerda se divide por qualquer razão – valores, ênfases, interpretações – enquanto a direita se une por interesses.

O fato, porém, é que a percepção da importância e do carisma de Lula, além da constatação de que sem Lula a esquerda não teria a mínima chance eleitoral de governar o país, parece levar a militância a um alinhamento automático com o seu maior líder. Mesmo em questões penosas, como quando Lula coloca interesses políticos pragmáticos acima da pauta identitária.

A sensação é que para os militantes, graúdos e miúdos, vale para Lula o que se dizia de Roma antiga: "Roma locuta, causa finita". Quer dizer, havia um considerável espaço para as querelas jurídicas e as divergências políticas, mas só até que uma autoridade, um tribunal, uma instituição de Roma se pronunciasse a respeito. De maneira similar, "Lula falou, a questão está resolvida", pelo menos para a militância petista.

Talvez essa impressão não seja tão verdadeira assim. No caso do conflito entre HamasIsrael e Palestina, a posição de Lula e a da militância petista seguem linhas claramente paralelas. Sim, o presidente da EBC foi demitido, segundo se alega, por conta de seus posts inflamados contra Israel e o sionismo. Mas a presidente do PT disse o mesmo, e pior, para condenar o "genocídio contra a população de Gaza" executado pelo Estado de Israel, sem a menor consideração pela posição enunciada pelo presidente da República nem com as reações do governo de Israel à provocação.

Lula já declarou duas vezes que a matança e o sequestro de civis israelenses pelo Hamas foram um ato de terrorismo e tem recusado a exigência dos seus seguidores de que declare que Israel faz "terrorismo de Estado". Nem têm usado as palavras "apartheid" e "genocídio" associadas a Israel, armas fundamentais da guerra moral em que a esquerda está engajada nas plataformas de mídias digitais.

Petistas influentes, por outro lado, não hesitam: "terrorismo" é palavra proibida quando aplicada ao Hamas e designação essencial para o Estado de Israel. Como determinou normativamente uma dessas figuras essa semana, nenhuma pessoa de esquerda deveria usar o conceito de terrorismo para grupos e líderes que se insurgem contra a dominação do sistema imperialista. Para o império, por outro lado, decerto que sim. E, "com todo o respeito", discorda-se explicitamente de Lula, pois não se considera razoável chamar de terrorismo o que faz o Hamas "sem aplicar o mesmo conceito ou outro mais grave ao Estado colonial de Israel".

Não se trata aqui de decidir quem está certo nessa controvérsia - embora essa observação não tenha a menor chance de ser notada nesses tempos em que o julgamento precede a leitura –, mas de entender por que a posição de Lula e a dos militantes petistas estão desalinhadas dessa vez e, o que é mais surpreendente, a posição de Lula é que é minoritária nas trincheiras da esquerda mais ativa e mais engajada nos ambientes digitais.

Não e que me desagrade que Lula governe o Brasil e não o PT, ao contrário. É que Lula já se pronunciou sobre a questão em disputa e isto não mudou em nada a posição do partido ou da militância, e isso não é comum.

É possível que a hipótese do alinhamento automático entre líder e seguidores não dê conta de um outro fenômeno típico do seguimento em grupos muito coesos em convicções, valores e atitudes: eventualmente, prefere-se os dogmas do grupo ao vínculo intelectual ao líder. O que significaria que, no fundo, a posição dos petistas sobre a questão palestina é tão arraigada, tão identificada aos valores do grupo e tão automaticamente compartilhada que acompanhar Lula produziria uma dissonância cognitiva tão intensa que a maioria prefere evitar.

Não se abre facilmente mão de toda uma simbologia da luta do oprimido contra o opressor e de uma inclinação automática a torcer pelo azarão. Por anos e anos o grupo se habitou a falar e ouvir sobre a desumanidade com que são tratados os palestinos ou a injustiça dos assentamentos israelenses. Isso dificulta, quando não impede, qualquer alternativa de compreensão da realidade, de modo que até o terrorismo do Hamas desaparece da equação e da percepção social. No fundo, é isso: entre a convicção do grupo e a posição oficial de Lula, desta vez o petista de fé parece preferir majoritariamente manter a sua crença. "Com todo o respeito".

*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada

 

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