quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Zeina Latif - Não chore por nós, Argentina

O Globo

A Argentina tornou-se um país ingovernável, no sentido não haver sustentação da política econômica, independentemente da alternância de poder

Sabemos que o grande nó que precisa ser desatado para o avanço de reformas e ajustes na economia é de ordem política. Claro que isso não dispensa a necessidade de programas econômicos bem estruturados, baseados em diagnósticos corretos e propostas bem fundamentadas. No entanto, sem lideranças capazes, dispostas à negociação e ao enfrentamento de grupos organizados, os avanços tendem a ser tímidos. As propostas viram utopia.

A polarização extrema da política é um grande dificultador, pois pode inviabilizar a construção de consensos. O problema é ainda maior quando prevalece o populismo nos dois polos, que gera ganhos de curto prazo, mas hipotecando o futuro. A saudável concorrência na política perde seu poder de evitar cenários extremos.

Na Argentina, todos esses problemas se misturam. Faltam boas propostas de ajuste econômico e há grande polarização e populismo em ambos os lados da política.

O irônico é que a Argentina começou sua história de forma promissora. Entre 1870 e 1914, viveu sua “idade de ouro”. Impulsionada pelo intercâmbio mundial, foi um dos mais exitosos países na época, com o PIB per capita crescendo mais do que nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Brasil; países que também contavam com vastos recursos naturais e atraíam influxos de capitais e de imigrantes europeus. Vale ainda citar o investimento em educação, diferentemente da maioria dos países da América Latina – a escolaridade média em 1930 era de 3,4 anos na Argentina e 1,4 ano no Brasil.

As duas guerras mundiais machucaram a economia argentina. Entre 1913-45, seu crescimento per capita ficou bem aquém do observado naquele conjunto de países. Como resultado, alimentou-se a pressão de grupos de interesse, debilitando as frágeis instituições democráticas.

A história do peronismo começa no pós-guerra. A política econômica de Juan Perón, eleito em 1946, tinha cunho populista, com forte intervencionismo estatal, expansão fiscal, repressão financeira e fechamento da economia (política tarifária, câmbio múltiplo). Como resultado, inflação galopante, baixo crescimento e elevada volatilidade.

Pouco ou quase nada mudou. Governos que sucederam a Perón – no regime militar e na volta da democracia em 1983 – introduziram planos de estabilização, alguns com tentativas de redução dos desequilíbrios fiscais. Esforços incompletos, porém, e sem continuidade por sucessores. Os presidentes “reformistas” enfrentaram muitas dificuldades e protestos, quando não o caos político.

O caráter pendular da política econômica, em parte ligado ao ciclo de commodities, cobra um preço alto, que se traduz na recorrente redução da participação da Argentina no PIB global e na maior vulnerabilidade a choques externos.

A sobrevivência do peronismo e a incapacidade da Argentina de renovar sua plataforma política é sinal claro do fracasso da política. Mal comparando, seria o equivalente ao varguismo continuar como maior referência da política do Brasil, apesar das muitas transformações desde sua saída de cena. Diferentemente do Brasil, não há força nos partidos de centro e tampouco moedas de barganha política.

A Argentina tornou-se um país ingovernável, no sentido não haver sustentação da política econômica, independentemente da alternância de poder. Os ajustes na economia, quando ocorrem, não produzem a necessária correção de rumo, pois são tímidos, com muitas concessões equivocadas e são descontinuados. Ao final, o sofrimento é duplo, pois os sacrifícios impostos não trazem a “cura” prometida, isso em meio à grande desconfiança da sociedade.

Brasil e Argentina tiveram caminhos que se cruzaram e, em alguns aspectos, ainda são paralelos, mas aqui erramos menos. A Argentina penalizou a agropecuária exportadora, enquanto Brasil adotou políticas bem-sucedidas para o setor, o que se tornou passaporte para a acumulação de reservas e a superação das crises externas frequentes. Logramos estabilizar a economia, o que mudou as crenças da sociedade, que não aceita retrocessos. A superação desses problemas veio com a construção de marcos institucionais mais modernos e algum avanço em reformas estruturais.

A trágica história econômica argentina é reflexo da falta de maturidade política para resolver conflitos. O vencedor das eleições precisará, antes de mais nada, desarmar a política. Tarefa difícil para qualquer eleito.

 

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