segunda-feira, 20 de novembro de 2023

César Felício - Milei vence e dúvida é se governo será marcado por ruptura ou tutela

Valor Econômico

O “anarcocapitalista” que aderiu a todas as bandeiras mundiais da extrema direita ganhou no segundo turno a companhia da direita tradicional, em especial do ex-presidente Mauricio Macri

A primeira incógnita que se abre em relação ao presidente eleito da Argentina, Javier Milei, é se será um governo marcado pela ruptura ou pela tutela. Houve um Milei até a realização do primeiro turno da eleição da Argentina e outro na rodada final das eleições.

O “anarcocapitalista” que aderiu a todas as bandeiras mundiais da extrema direita ganhou no segundo turno a companhia da direita tradicional, em especial do ex-presidente Mauricio Macri. Foi uma contradição flagrante a um de seus principais lemas, o da antipolítica. Não se sabe o que Milei pactuou com Macri. Segundo disse o presidente eleito em seu primeiro discurso, nada. Ele agradeceu o ex-presidente por ter dado apoio “desinteressadamente”. Mas o poder de barganha de Macri não é pequeno.

O partido de Milei elegeu 7 senadores, em um universo de 72. Na Câmara são necessários 129 para a maioria, e o La Libertad Avanza, abrigo para a extrema direita, conta com 38. É pouco para quem se propôs na campanha a cortar gastos públicos equivalentes a 15% do PIB, fechar o Banco Central e acabar com o peso argentino. Nada disso foi mencionado por Milei em seu discurso de presidente eleito, ainda que tenha sinalizado para objetivos ambiciosos: “as mudanças que necessitamos são drásticas. Não há lugar para gradualismo”, disse.

A aliança de Macri elegeu 24 senadores e 93 deputados, mas deve perder algumas cadeiras, de lideranças inconformadas com a decisão do ex-presidente de respaldar o extremista. Ou seja, mesmo com Macri, Milei tende a ser um presidente com minoria nas duas casas do Congresso.

Milei conseguiu uma maioria popular expressiva, o que tende a fortalecê-lo na negociação com Macri. Foi o recado que procurou mandar em seu discurso de eleito, que teve toda uma coreografia para dizer que não reconhece sócios na vitória: fez questão de aparecer no palco sozinho e suas mais calorosas deferências foram para seu próprio grupo político. Citou a irmã e chefe de campanha, Karina Milei, e Santiago Caputo, um de seus estrategistas.

A “entourage” de Milei lembra a do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018. Trata-se de gente com pouca experiência política, a começar da vice-presidente Victoria Villarroel, ligada a um setor muito minoritário que defende o sanguinário regime militar que governou o país entre 1976 e 1983.

Caberá à vice-presidente o comando formal do Senado. Pode-se prever que Villarroel procurará colocar os militares de volta ao jogo político, mas a possibilidade de Milei tentar seduzir as Forças Armadas para uma aventura autoritária é mínima. O risco de ruptura por esse lado é significativamente menor do que o que o Brasil viveu durante o governo Bolsonaro, recheado de ministros militares, ele mesmo egresso da caserna. O ativo mais importante que Villarroel agrega em um primeiro momento é o desestímulo à classe política em articular um impeachment.

O quadro de Milei mais articulado politicamente é Guillermo Francos, político do pequeno Partido Federal, ligado ao empresário Eduardo Eurnekian, dono do grupo Corporación América, que no Brasil têm a concessão do aeroporto de Brasília e de quem Milei foi empregado. Possivelmente será o articulador político do governo. Em relação ao restante da equipe, tudo dependerá da queda de braço entre Milei e “a casta” dos políticos que ele prometeu varrer do país. Na sua primeira fala após às eleições, sinalizou que tentará compor. “Quero dizer a todos os dirigentes que aqueles que quiserem se somar serão benvindos”, disse.

O ministro da Economia Sergio Massa reconheceu rapidamente a derrota, telefonou para Milei e acenou com uma transição organizada com o atual presidente Alberto Fernández, mas convém cautela. Faltam apenas 14 dias úteis para a posse e Massa não fala mais pelo peronismo. Na oposição, a principal referência passa a ser o governador reeleito da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, muito mais à esquerda. Os peronistas já se mostraram no passado capazes de desestabilizar governos. No seu discurso, Milei acenou com um tratamento duro a uma oposição forte em manifestações de rua. “Dentro da lei, tudo. Fora da lei, nada. Não há lugar para os violentos. Vamos ser implacáveis”, disse.

Essa segunda-feira é feriado nacional na Argentina, e o país deve viver uma busca desenfreada pelo dólar nas “cuevas”, onde se negocia o dólar no paralelo. Não se pode descartar um cenário comentado internamente como de “dolarização sangrenta”, um abandono da moeda nacional que brotará das ruas. É um cenário de curto prazo desastroso para empresas argentinas que dependem de importações, o que preocupa muito o governo brasileiro.

Uma autoridade do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio comentou que há uma grande quantidade de exportadores brasileiros de pequeno porte que operam sem seguro. Podem ficar sem receber.

 

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