sexta-feira, 17 de novembro de 2023

César Felício - A polarização alimenta islamofobia e antissemitismo

Valor Econômico

No Brasil, perigo pode ser exacerbado por iniciativas que partem tanto do governo quanto da oposição

A polarização social cada vez mais cristalizada polui a visão da opinião pública sobre a guerra de Gaza e alimenta dois monstros: o antissemitismo e a islamofobia. Esse é um fenômeno mundial e esperado, uma vez que não há questão internacional que mobilize tanto a atenção quanto às relacionadas a Israel e Palestina. No Brasil, contudo, esse perigo pode ser exacerbado por iniciativas que partem tanto do governo quanto da oposição.

A começar da oposição: há uma apropriação evidente da identidade judaica e do sionismo pelo arco de forças unidos no bolsonarismo, com um estímulo muito mal disfarçado do governo de Israel. O processo teve um ponto de aceleração no dia 8, quando a administração de Netanyahu tomou duas atitudes que o colocaram no debate político brasileiro.

Naquela quarta-feira, o embaixador de Israel, Daniel Zonshine, encontrou-se publicamente com o ex-presidente Jair Bolsonaro, na Câmara dos Deputados. No mesmo dia, a conta oficial nas redes sociais de Netanyahu anunciou que o Mossad tinha colaborado com a Polícia Federal para frustrar ataques terroristas do Hezbollah no Brasil.

O governo brasileiro ignorou a primeira afronta, mas passou recibo da segunda. “Nenhum representante de governo estrangeiro pode pretender antecipar resultado de investigação conduzida pelo governo federal ainda em andamento”, escreveu o ministro da Justiça Flávio Dino em redes sociais.

Na terça-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu o tom. Estabeleceu uma equivalência entre o país e o Hamas, basicamente acusando o país de responder com terrorismo ao terrorismo. “É verdade que houve um ataque terrorista do Hamas, mas o comportamento de Israel, fazendo o que está fazendo com mulheres e crianças, é igual ao terrorismo. A atitude de Israel é igual terrorismo, não tem como dizer outra coisa”.

É uma declaração que foge da diplomacia. “O nivelamento de Israel com o Hamas se faz no sentido popular. Não dá para comparar um Estado com uma organização sectária”, comenta o ex-secretário de Assuntos Estratégicos Hussein Kalout, um especialista em política externa que condena a ação militar israelense.

“Lula lida bem com acordos e mal com guerras”, disse o coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, Michel Gherman, um defensor do cessar-fogo imediato no conflito. Para Gherman, se a pretensão do Brasil é ter lugar em um futuro acordo para a aproximação entre opostos no conflito, algo que parece distante, “a narrativa de quem está em Gaza não pode ser a narrativa do governo federal”.

O aceno de Lula para o público interno foi neutralizado nessa quinta-feira em um diálogo de 40 minutos com o presidente de Israel, Isaac Herzog, de ala política oposta a Netanyahu. Na conversa, Lula comprometeu-se a atuar para a libertação dos reféns israelenses em poder do Hamas. Um gesto positivo para o governo se descolar do jogo destrutivo da polarização.

Gherman vê um diálogo tácito entre os extremos dos polos. A armadilha montada pela articulação da extrema-direita israelense com a brasileira confunde Netanyahu e Israel como se fossem uma coisa só. Por esse raciocínio, opor-se à ação do governo de Israel significa opor-se a Israel.

Propor que se tome o todo pela parte é um risco. Ao se vulgarizar o conceito, eis a porta aberta para a relativização do antissemitismo. Dados divulgados pela Confederação Israelita do Brasil e pela Federação Israelita de São Paulo na semana passada mostraram o tamanho do estrago já feito: foram recebidas 467 denúncias de antissemitismo em outubro desse ano, face a 44 em outubro do ano passado.

Tanto de um lado como do outro dos polos ideológicos tem gente falando coisas descompassadas com a realidade e o espaço para se fazer análise diminui, aponta Kalout. Antissemitismo e islamofobia, na opinião dele, são sentimentos latentes na sociedade brasileira há muito tempo e as origens mais remotas do preconceito aos judeus não estão na esquerda, frisa.

A estigmatização contra muçulmanos ganhou impulso mundial depois do 11 de setembro e pode avançar no Brasil caso se comprove a atuação do Hezbollah para organizar atentados terroristas no Brasil. Suspeitas sobre a presença da organização terrorista libanesa no país são investigadas desde 2002. Os atentados contra uma entidade judaica e a Embaixada de Israel na Argentina na década de 90 sugerem um risco que não pode ser negligenciado.

De novo a grande armadilha que se pode cair é a tomada do todo pela parte. Basta uma pesquisa nada extensiva em redes sociais para se encontrar manifestações de claro preconceito a árabes em geral e palestinos em particular. E processos correm na Justiça. Na terça, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra um internauta de Guarulhos (SP), que gravou em 2019 vídeo em um cemitério islâmico.

PGR

Integrantes da cúpula do Ministério Público que estão fora da corrida pela vaga de procurador-geral da República se mostram muito confortáveis com a demora já de 51 dias para Lula tomar uma decisão. A equipe administrativa montada pelo ex-PGR Augusto Aras está mantida e a procuradora interina Elizeta Ramos não posterga decisões. Não se sente nenhuma solução de continuidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário