Folha de S. Paulo
Anistiar e não mudar as coisas não nos
interessa mais
A delinquência política bolsonarista não
foi delinquência de um homem só. Foi programa estruturado de governo que atiçou
atores públicos e privados, civis e militares, industriais e extrativistas,
urbanos e rurais. Em geral, fora da lei. Em bom número, armados. Com juristas
invertebrados debaixo do braço. Praticando autolegalidade.
O homem que dá nome, rosto e voz para a época
de maior incivilidade federal da história brasileira recente agregou muita
gente na construção de uma máquina multifacetada e pluriautoral. Causou morte,
sofrimento e empobrecimento por ação e omissão dolosas.
Essa engrenagem colocou o Brasil entre os líderes da onda global de autocratização, na companhia de Índia, Nicarágua, Hungria, Polônia, etc. Cada um a seu modo e ritmo, com caixa de ferramentas compartilhada, foi esvaziando liberdades, exaurindo instituições de controle e corrompendo a competição eleitoral.
Jair Bolsonaro foi derrotado nas eleições de
2022. Depois de acossar a Justiça Eleitoral com militares, despejar bilhões de
reais em orçamento secreto, tecendo trama clientelista interfederativa,
instigar patrões a constranger preferências eleitorais de empregados, exigir
vigilância nas repartições, espalhar propaganda teo-eleitoral nas igrejas e
re-turbinar sua usina de desinformação e incitação de medo e ódio, perdeu.
Por pouco, a marcha da autocratização não
completou seu ciclo em outubro de 2022, pelo voto, e em janeiro de
2023, pelo coturno. A reeleição do autocrata costuma ser o
ponto de não retorno, a virada definitiva da transição de regime. Derrotar
eleitoralmente o autocrata e sobreviver a tentativa de golpe, desenhado em
minuta de decreto, pode desacelerar a marcha da erosão democrática, mas não a
interrompe. Há tarefas fundamentais pendentes.
Em primeiro lugar, as tarefas do voto:
projetos eleitorais bolsonaristas continuarão a explorar o espólio extremista
que se forjou no Brasil. Nas eleições
municipais de 2024, e ainda mais nas presidenciais de 2026,
continuarão a nutrir ambições de ruptura democrática.
Há tarefas de mudança normativa e
institucional: a reforma das Forças
Armadas e da arquitetura policial, a despolitização de
carreiras de Estado, a regulação de plataformas de tecnologia, a construção
mais criteriosa de uma doutrina jurídica da democracia militante que não
dependa só do ímpeto da caneta de Alexandre de
Moraes.
Não se pode contar com o concerto improvável
entre STF e TSE atuando
discricionariamente no vácuo regulatório.
E há tarefas de justiça, ainda mais urgentes.
Reparar o passado costuma ser uma condição, entre outras, para que catástrofes
não se reiterem no futuro. Na memória da delinquência bolsonarista, há
documentos indispensáveis: relatórios das CPIs da Covid e
do 8 de janeiro; as dezenas de bons pedidos de impeachment (entre os 150
apresentados); as representações criminais ao Tribunal Penal Internacional; a
ação civil pública contra a Jovem Pan, o vértice oficial do esquema de
desinformação, conspiração e incitação de ruptura.
Esse arsenal de fatos típicos da lei criminal
precisa de consequência jurídica à altura.
A punição dos bagres patriotas acampados nos
quartéis, em caravana gratuita para vandalizar os prédios do Planalto, não será
suficiente. A declaração de inelegibilidade de Jair Bolsonaro e Braga Netto, passo
fundamental, também não dará conta de mitigar o risco. Bolsonaro e o
bolsonarismo sairão vitoriosos se permanecerem socialmente normalizados e
politicamente vivos (ainda que alguns se tornem eleitoralmente impedidos por um
tempo).
Em paralelo ao esforço de responsabilizar
práticas criminosas, afinal, está em curso o esforço da anistia. Não mais por
uma Lei de Anistia, como a de 1979, cuja constitucionalidade o STF ainda não
terminou de julgar (parada desde 2011, sob relatoria de Fux, transferida para
Toffoli em 2021).
Há uma anistia escondida no ilusionismo
magistocrático, caso por caso, adiamento por adiamento. Embutida no devido
processo legal à brasileira. Aquele que "pacifica" pela preservação
da violência.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência
Texto magnífico! Fazia meses que eu não lia algo tão bem escrito! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirSim!
ResponderExcluir=》São gravíssimas as delinquências políticas bolsonaristas.
■Mas e as delinquências políticas lulistas?
O colunista é ótimo.
ResponderExcluirAs delinquências políticas lulopetistas nunca ameaçaram a democracia brasileira.
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