O Globo
Vilma Nascimento e a população negra do país
precisam é de justiça. E de cidadania plena, brasileira
Acontecimentos de gravidade ou relevância
excepcional não faltaram na semana passada. Não foi pouca coisa o estrepitoso
pouso de Javier Milei e
suas melenas revoltas no palco mundial. Eleito no domingo passado por ampla
maioria para comandar uma nau à deriva — a Argentina —, ele já deu piruetas
múltiplas antes mesmo da posse, marcada para 10 de dezembro. Não faltarão
oportunidades, portanto, para tratar de Milei e de seu momentoso futuro.
Nada que se compare ao que talvez seja a mais complexa operação diplomática, logística, política e militar colocada à prova na sexta-feira em Gaza. A negociação multilateral que entreabriu os porões do terror palestino para a libertação dos primeiros reféns em mãos do Hamas — e a trégua inicial de quatro dias nos bombardeios de terraplenagem israelense — ainda é uma obra em aberto. E quase um milagre: sentados à mesma mesa estão dois lados que querem se aniquilar mutuamente (Israel e Hamas); o negociador principal (Catar) nem sequer tem relações diplomáticas com Israel e financia abertamente o Hamas; a superpotência militar (Estados Unidos) financia ostensivamente Israel, mas também tem uma base militar importante no Catar. Tudo bem mais complexo e frágil, portanto, do que as negociações que levaram ao fim da Guerra do Vietnã na década de 1970.
A dimensão humana dessa primeira pausa no
horror se tornará conhecida à medida que os reféns libertados pelo Hamas, em
troca da soltura de adolescentes e mulheres palestinos de prisões israelenses,
puderem começar a falar — e a ouvir. Em algum momento precisarão ser informados
de que um neto, um filho, um pai, amigo ou irmão foram chacinados em 7 de
outubro. Para a população de Gaza, há o trauma coletivo de procurar vida,
escavar por mortos, encontrar um chão decente para enterrá-los e preservar
vestígios de esperança entre os escombros. O silêncio da trégua nos bombardeios
começou a ser preenchido pelo horror da descoberta do que deixou de existir. E
do que ainda está por ser destruído quando e se os bombardeios punitivos
voltarem a obliterar animais, vegetais, humanos.
Duas tangerinas bem brasileiras interromperam
brevemente o fluxo desse noticiário internacional da semana. Elas saíram de
dentro de uma bolsa cabe-tudo — daquelas cheias de divisórias internas e bolsos
externos em que socamos tudo o que queremos ter à mão. Por isso mesmo costumam
ficar abarrotadas e são difíceis de esvaziar.
Na última terça-feira, depois de ser
homenageada no Congresso Nacional como parte das comemorações do Dia da
Consciência Negra, Vilma Nascimento e sua filha Danielle preparavam-se para
embarcar de volta ao Rio. Vilma, como qualquer folião sabe, é a lendária
porta-bandeira da Portela, cultuada ao longo de gerações. Está com 85 anos.
Abordada
no aeroporto de Brasília por uma agente de segurança da Dufry Brasil,
do grupo Avolta, lhe foi solicitado que abrisse a bolsa para verificação. A
filha logo percebeu do que se tratava e começou a gravar o curto diálogo com a
mãe:
— Esqueceu de pagar algum produto, mãe?
— Eu? Não comprei nada, como é que vou pagar?
Os dois pacotes de M&M’s amendoim e
chocolate a R$ 13,90 cada haviam sido comprados por Danielle, com recibo.
— Mãe, não fala nada. Só faz o que ela está
pedindo que depois a gente vê. Tira tudo da bolsa, mãe.
Dona Vilma tirou primeiro as tangerinas. A
bancada era estreita demais para tanta coisa que saía da bolsa. Foram se
amontoando uma caixa de medicamento (genérico), uma nécessaire, sacolinhas de
plástico transparentes com variedade de itens, lenços de papel amassados, outro
medicamento, uma fitinha vermelha que teimava em se enroscar, lápis, canetas,
mais papel amassado, uma garrafinha de plástico, mais miudezas... Tudo sob o
olhar intraduzível da fiscal de segurança, sorridente no crachá da firma.
O vídeo captado por Danielle dura apenas um
minuto e 12 segundos, não registra qualquer altercação — apenas a humilhação da
suspeita indevida, somada à humilhação de a intimidade da bolsa ser exposta em
praça pública. É de uma violência surda, difícil de assistir. Ao final, a
octogenária ainda precisou recolher no chão os itens que transbordaram da
bancada e fazê-los caber novamente na bolsa.
O resto da história seguiu o roteiro
esperado: a Dufry Brasil divulgou nota com pedido de desculpas pelo “lamentável
incidente” — e pela abordagem “fora do padrão” — e a fiscal de piso foi
afastada. Manifestações de solidariedade oficiais não faltaram. As de afeto,
respeito e carinho pessoais, a cidadã portelense já tem de sobra — ela e a
população negra do país precisam é de justiça. E de cidadania plena,
brasileira. Não tão distante assim do que pede o povo palestino.
Verdade.
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