sábado, 4 de novembro de 2023

Eduardo Affonso - Iletramento radical

O Globo

Insistir que preto, negro ou escuro tenham sempre conotação depreciativa é negacionismo etimológico ou de contexto

É fácil imaginar o ridículo em que incorreria uma ministra da Saúde que declarasse:

— Falar em vírus de computador contribui para o descrédito das campanhas de vacinação. Pessoas que têm letramento sanitário não dizem coisas como “o carro morreu”, e a gente escuta muito isso.

Ou um ministro dos Direitos Humanos, em campanha contra o etarismo, criticar expressões do tipo lua nova, bossa nova, Novalgina, Jovem Pan, Jovem Guarda — por enfatizarem o “novo”, perpetuando a discriminação aos idosos.

— Pessoas que têm letramento etário não usam — diria, valendo-se da velha (ops, surrada) carteirada da superioridade intelectual.

Está fora de cogitação um magistrado (digamos, do STF) condenar quem diga “pneu careca” ou “estou careca de saber”.

— Indivíduos utentes de letramento capilar não logram valer-se de elocuções desse jaez — aludiria, em seu ínsito vernáculo.

Não, ninguém que preze a inteligência alheia desenvolveria “raciocínios” tão descabidos. É óbvio que carro não entra em óbito; que a escola de samba se chamar Mocidade Independente de Padre Miguel não exclui a velha guarda; que o campo careca tem apenas grama rala, sem aludir à calvície de ninguém.

Mas a ministra da Igualdade Racial tachou de analfabeto quem não vê racismo em “buraco negro” e prefere entendê-lo como definido pela Física (região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nenhuma partícula ou radiação eletromagnética consegue escapar) — e se vale disso, metaforicamente, para uma situação que pareça um beco sem saída. Culpa da ciência, claro, que não soube se antecipar aos delírios identitários do século XXI e deixou de chamar de flicts, talvez, à cor que absorve todos os comprimentos de onda.

Insistir que palavras como preto, negro, escuro — ou quaisquer de suas variações — tenham sempre conotação racial (e depreciativa) é puro suco de negacionismo etimológico ou de contexto. Mas se encaixa à perfeição no discurso “nós” (afrodescendentes, mulheres, LGBTQIAP+, despossuídos, oprimidos, compassivos, conscientes e de esquerda) versus “eles” (eurocêntricos, tóxicos, convencionais, privilegiados, opressores, insensíveis, iletrados e de direita).

Êta mundinho binário!

Para “desracializar” a linguagem, será preciso revogar a dicotomia entre luzes e trevas que nasceu com o universo, no bigue-bangue, e reparar a injustiça óptica de o branco ser a soma de todas as cores e o preto a ausência de luz. Até lá, não hão de cessar os ataques ao balé “O lago dos cisnes” (o cisne negro é a gêmea má), ao humor negro e, se bobear, até ao prêt-à-porter (associação sonora de “preto” a um tipo de roupa que não é de alta-costura...).

Dará trabalho (com o perdão da palavra) decolonizar o cérebro de quem contrabandeia, sem juízo crítico, certos conceitos acadêmicos — como racial literacy — e quer aplicá-los, na marra, a uma realidade tão diferente daquela para a qual foram pensados.

Lutar contra as palavras (luta mais vã...) em vez de olhar para o racismo real lembra a velha piada de procurar na sala (que está mais iluminada) algo que se perdeu no quintal. A pessoa nunca vai achar, mas se sentirá gratificada pelo fingido esforço de encontrar.

 

4 comentários:

  1. Até onde eu sei,o preto é que é a soma de todas as cores,enquanto o branco é a ausência de cor.

    ResponderExcluir
  2. O Iluminismo influiu muito pouco no Brasil. A classe política é, no geral, reflexo da maior parte do povo. Tosca. Pôr a mão no dinheiro, de preferência o dos outros, jogando sem trabalhar é o primeiro objetivo. A tendência é os governantes se tornarem cada vez mais estúpidos e grosseiros.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A tendência à grosseria, estupidez, corrupção e incoerência é uma ; outra opção é nós nos esforçamos para reverter ao menos um pouquinho desta tendência ao obscurantismo.

      É bem difícil reverter as visões atrasadas, eu admito ; e é difícil reverter menos pelo ideologismo e mais porque quem se diz progressista no Brasil só faz esta declaração como disfarse e o que fazem, na verdade, é viver do movimento social.

      Progressista à vera, no Brasil, são muito poucos e com maioria que tem visão mais à direita. São bons progressista, mas são muito poucos.

      Temos que tentar reverter a tendência ao fundo! A velocidade com que o buraco econômico e cultural no Brasil está sendo cavado nos últimos 20 anos é bem assustador.

      Excluir
    2. E a farsa de um partido político e seus blogues se dizerem progressistas e publicarem o "Brasil171" e terem como presidenta a Glehse Hoffmman é um imenso deboche

      Excluir