sábado, 4 de novembro de 2023

Pablo Ortellado - E se a culpa não for das redes?

O Globo

Não foi o Instagram que produziu o narcisismo, foi o narcisismo que preparou o Instagram

A editora Fósforo relançou neste ano, em nova tradução, o clássico livro de Christopher Lasch “A cultura do narcisismo”. O livro, originalmente lançado em 1979, é um ensaio sociológico e psicanalítico sobre as mudanças políticas e culturais dos Estados Unidos dos anos 1970. Passados quase 45 anos, ele ilumina como poucos o panorama político e cultural contemporâneo. É leitura imprescindível.

O ponto de partida de Lasch é entender de que maneira a vigorosa cultura política dos movimentos pelos direitos civis dos anos 1960 se degradou numa cultura narcisista e terapêutica dos anos 1970 em diante.

Analisando biografias de militantes de esquerda dos anos 1970, ele mostra como as preocupações propriamente políticas de melhorar as condições de vida dos trabalhadores vão sendo obliteradas nas narrativas biográficas pelo fascínio narcisista de conviver com pessoas importantes e viver experiências excitantes. Como diz Lasch, “a política degenera numa luta não por mudança social, mas por autorrealização”. É como se o interesse narcisista de receber aplausos e validação social pelo que se viveu se tornasse mais importante do que os objetivos políticos — apenas uma espécie de subterfúgio para a desavergonhada exibição do eu.

Também na literatura, Lasch mostra como os escritores vão perdendo a capacidade de sair de si, projetando tramas com personagens que mal disfarçam ser o autor ou são diretamente autobiográficos. Essa ênfase na expressão mais direta do eu, no entanto, não vinha acompanhada, como em ondas autobiográficas do passado, de um balanço crítico da própria trajetória, pautado pela autorreflexão. Desta vez, a literatura se convertia na exibição narcisista de uma vida interessante que apenas buscava impressionar.

É notável como esses traços culturais que hoje vemos de maneira tão clara na cultura dos influenciadores do Instagram precedem as redes sociais em mais de 30 anos. Os influenciadores que exibem e encenam uma vida privada marcada por riqueza, por beleza ou pelo convívio com famosos não são nada diferentes da vanguarda política e artística dos anos 1970 que Lasch observa.

Essa análise crítica da cultura dos anos 1970 mostra que o narcisismo contemporâneo não foi criado pelo Facebook ou pelo Instagram. Ao contrário, sugere que essas plataformas que permitem a exibição do eu obtiveram sucesso justamente porque se adequavam à cultura narcisista que se instalou na nossa sociedade no final do século passado. Não foi o Instagram que produziu o narcisismo, foi o narcisismo que preparou o Instagram.

Um dos momentos mais luminosos do livro é quando ele esclarece a natureza do individualismo contemporâneo, a partir de uma polêmica com o sociólogo Richard Sennett, que publicara em 1977 o também clássico “O declínio do homem público”. Lasch explica que o individualismo contemporâneo parece um abandono da esfera pública e, consequentemente, uma reclusão na vida privada, mas, na verdade, acontece o contrário. A cultura contemporânea não é orientada ao privado, mas hipersocializada, porque requer a todo momento a validação social de impulsos exibicionistas.

“A despeito de suas ilusões esporádicas de onipotência”, diz Lasch, “o narcisista depende de outros para validar sua autoestima. Ele não consegue viver sem uma audiência de admiradores. Sua aparente liberdade com relação aos laços familiares e constrangimentos institucionais não o libertam para que siga seu próprio caminho ou se regozije em sua individualidade. Pelo contrário, alimentam a insegurança que o narcisista só consegue superar ao ver seu ‘self grandioso’ refletido na atenção dos outros”.

Mais uma vez, nada poderia ilustrar melhor esse ponto do que a maneira como nos relacionamos com as mídias sociais. Quando vemos alguém num restaurante, com os olhos vidrados na tela do celular, achamos que está ensimesmado, rechaçando as relações interpessoais oferecidas pelo ambiente. Na verdade, está imerso em intensos feixes de relações sociais, oferecendo e recebendo validação social com curtidas e comentários nas redes. O aparente isolamento não é orientação à vida privada, é hipersocialização. É, até, a destruição do espaço antes reservado à vida privada.

O frequente uso de mídias sociais na cama ou no banheiro mostra quanto a hipersocialização descrita por Lasch invade os mais recônditos esconderijos da vida privada — locais reservados onde outrora residia a reflexão e a introspecção.

Para entender o presente, precisamos olhar para o passado. Precisamos (re)ler Christopher Lasch.


Um comentário:

  1. Muito interessante! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!

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