O Estado de S. Paulo
Se levarmos a sério o alerta do incômodo discurso de cinco anos atrás, veremos que a miséria da comunicação do ‘campo democrático’ não foi resolvida
A observação foi do cineasta Roberto Gervitz.
Quando se acenderam as luzes na sala do cinema, após a projeção do documentário
Partido (com direção de Cesar Charlone, Sebastián Bednarik e Joaquim Castro),
na 47.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ele sentenciou, com sua
argúcia costumeira, que a fala do rapper Mano Brown é o ponto alto do filme.
Estávamos na Rua Augusta, sábado à noite, chovia lá fora, em pleno horário de
lazer da classe média e, bem, você sabe como é, Gervitz tem razão.
Mas do que se trata, exatamente? Expliquemos. O documentário registra a campanha presidencial de Fernando Haddad (PT), em 2018. O trabalho dos cinegrafistas conduz o fio narrativo. A câmera sai dos espaços públicos protocolares e previsíveis para adentrar a esfera familiar do político até se aboletar, confortavelmente, na cozinha e na sala de jantar. A reportagem flagra, entre outros episódios reveladores, o momento em que os Haddad recebem o linguista Noam Chomsky para almoçar. À vontade, Chomsky tece considerações, em inglês, sobre o consumo de bens de luxo. É interessante. Outras passagens, com personagens também inesperados, denotam sinais de alguma vida inteligente na burocracia partidária. Com ingredientes assim, o curso das imagens carrega enunciados ilustrados e, por vezes, eruditos, mas, no fim das contas, quem mais chama a atenção é mesmo o compositor de rap.
A cena de Mano Brown não é inédita. Ele surge
na tela com o célebre discurso que fez num comício do candidato petista no Rio
de Janeiro, na noite de 23 de outubro de 2018. Era uma terça-feira nervosa. Com
palavras duras, dividindo o palanque com Chico Buarque e Caetano Veloso, atacou
o fracasso da comunicação da campanha e fez o contraponto crítico, sem nenhuma
concessão às técnicas motivacionais da marquetagem (a que tantos artistas se
curvam, sorridentes).
Naquela noite, as frases desconcertantes do
cantor perturbaram a plateia, como os jornais reproduziram no dia seguinte.
“Não gosto do clima de festa”, começou ele. “A cegueira que atinge lá atinge
aqui também. Isso é perigoso. Não tá tendo clima pra comemorar.” Àquela altura,
todo mundo percebia que uma virada era mais do que improvável, mas o rapper não
ficou só nisso. Em vez de fazer coro com a turma que joga a culpa no
adversário, afirmou que o lado de cá também tinha responsabilidade: “Se algum
momento a comunicação falhou aqui, vai pagar o preço. A comunicação é alma. Se
não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo. Falar bem do PT para
torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que precisa ser conquistada ou vamos
cair no precipício”.
Com efeito, caímos no precipício em 2018. Mas
e quanto ao dia de hoje? Como estamos nós em 2023? As eleições do ano passado
nos tiraram do precipício?
Em termos imediatos, a resposta é sim. Se o
eleitorado impediu a reeleição do ex-presidente, devemos isso ao fato de que a
campanha de 2022 foi mais eficiente do que a anterior. O óbvio, nada mais que o
óbvio. No entanto, essa alteração se deu no nível da conjuntura, isto é,
repaginou apenas a superfície dos acontecimentos. Por baixo das aparências, o
precipício continua onde estava antes. A Nação segue dividida, cindida,
separada em duas metades que não se reconhecem como legítimas. Se levarmos a
sério o alerta do incômodo discurso de cinco anos atrás, veremos que a miséria
da comunicação do chamado “campo democrático” não foi resolvida.
Comunicar não é convencer o lado de lá das
convicções chapadas do lado de cá, não é um passe de mágica para converter os
que são contra nós em nossos seguidores. O verbo “comunicar” tem um
pré-requisito, e esse pré-requisito é outro verbo, o verbo “ouvir”. A
comunicação de Haddad em 2018 e, em boa (ou má) medida, a de Lula em 2022
falharam. As duas falharam não porque não alardearam suas causas, mas por não
saber ouvir. Repisaram suas fórmulas retóricas um tanto gastas e, fora isso,
não escutaram o que havia de novo.
Para começar, não escutaram as periferias
empobrecidas que se preocupavam (e ainda se preocupam) com segurança pública.
Esnobaram os clamores dessa gente humilde, como se não aceitar a criminalidade
galopante fosse a mesma coisa que não aceitar os direitos humanos. As duas
campanhas também fecharam os ouvidos para as pessoas que cultivam costumes
convencionais, como se fosse pecado gostar de núcleos familiares em moldes
conservadores. Outro erro mortal.
Ato contínuo, a pregação da extrema direita
antidemocrática vicejou. A histeria do moralismo reacionário invadiu a pauta,
com suas mensagens desinformativas, como a da “mamadeira de...” (você sabe).
Aliás, o documentário mostra em detalhes a apoteose da tal “mamadeira”. A
lembrança nos choca, até hoje, mas nos choca menos por ter sido uma fraude
crassa e mais por ter sido crível, candidamente crível, para as multidões
hostilizadas pela comunicação arrogante de que falou Mano Brown. Íntegro e
livre, embora meio enfezado, ele discrepa. Dá o que pensar. Só lhe falta, a ele
também, ser ouvido.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Excelente texto, verdadeiro e informativo!
ResponderExcluirViu!
ResponderExcluir■Incrível: eu nunca esperava isto!
ResponderExcluir▪O Eugênio Bucci, também ele, é dicotômico e pensa a realidade que ele quer pensar em termos de "O Nosso Lado" e "O Outro Lado".
Na concepção de Eugênio Bucci externa da aqui, o que existir entre isto:: entre o que estiver 'do lado de cá' e 'do lado de lá' é para servir a eventual cooptação.
■Eu não esperava está concepção maniqueísta e pobre de Eugênio Bucci de jeito nenhum!