Valor Econômico
A transformação do sistema político
brasileiro começa com um debate mais qualificado sobre o destino de nossas
cidades
As eleições municipais ganharam uma
centralidade impressionante no sistema político brasileiro. Elas não só
selecionam os governantes que vão gerir políticas públicas fundamentais para a
garantia dos direitos dos cidadãos, como também são peças-chave para as
estratégias eleitorais de políticos estaduais e federais, que imaginam ter um
terreno mais sólido para suas ambições futuras caso tenham aliados fortes nos
governos locais. A despeito dessa relevância, os últimos pleitos municipais têm
sido marcados por um debate público que não enfrenta os principais desafios
contemporâneos das cidades brasileiras.
A noção de que o município faz diferença na
política e nas políticas públicas é muito recente no país. A história
brasileira, desde a Independência, foi de sufocamento do poder local, dando
mais poderes aos estados/províncias e/ou ao governo central/governo federal. A
Constituição de 1988 alterou radicalmente essa rota, dando aos municípios o
caráter de ente federativo, o que significou um repasse inédito de autonomia
política, financeira e administrativa.
Junto com a autonomia vieram novas, amplas e desafiadoras responsabilidades. O fato é que o Brasil combinou uma forte expansão do Estado de Bem-Estar Social, antes muito restrito a poucos, com uma grande descentralização municipalista dos encargos. Não foi um processo fácil, uma vez que as municipalidades tinham poucas funções de garantia universal dos direitos dos cidadãos. A maior parcela das prefeituras funcionava tal qual a famosa Sucupira de “O Bem-Amado”, que fez sucesso na década de 1970 na TV Globo. Para quem não se recorda, a principal bandeira do prefeito Odorico Paraguaçu era tentar inaugurar um cemitério - e, ironicamente, ninguém morria na cidade. Tratava-se de uma excelente metáfora sobre o sentido dos governos municipais de então.
A maior parte dos municípios teve que se
inventar como governos com políticas públicas amplas a partir da década de
1990. O balanço de mais 30 anos de municipalização de tarefas centrais do
Estado de Bem-Estar Social brasileiro é duplo. Por um lado, ampliou-se o rol de
serviços públicos, foram garantidos direitos que os cidadãos mais pobres nunca
tinham experimentado na história, bem como os governos locais produziram
inovações tanto no plano das políticas públicas - algumas delas depois
disseminadas ao governo federal - como em termos de democratização do Estado.
Por outro, no entanto, o saldo desse processo municipalista revela lacunas e
insuficiências.
Na lista de problemas, destaca-se
primeiramente que os resultados foram muito díspares entre as municipalidades.
Ainda há muita heterogeneidade territorial no que se refere à capacidade de
produzir políticas públicas com qualidade adequada. Na verdade, a maioria dos
governos municipais tem carências significativas que os impede de avançar mais.
Além dessa desigualdade federativa, após décadas com importantes inovações, o
municipalismo parece ter perdido grande parte de seu ímpeto modernizador. Ao
clientelismo tradicional somaram-se novas formas antirrepublicanas, como o
poderio do crime organizado nas comunidades locais.
O enfraquecimento do federalismo cooperativo
durante os governos Temer e Bolsonaro, ademais, reduziu a ajuda federal aos
municípios mais frágeis e favoreceu uma lógica de mera sobrevivência
individualista. A política local nos grandes centros também entrou, em boa
parte, na mesma lógica polarizadora e dominada por temas secundários com ibope
em redes sociais que cegam o debate público. Como corolário dessa nova fase de
desafios ao municipalismo, surgiram novas questões no século XXI, ou alguns
temas se tornaram mais complexos, o que, de todo modo, exigirá governos
municipais muito mais preventivos, ágeis e capazes de construir amplas alianças
para resolver tais problemas.
O fato é que os municípios precisam entrar no
século XXI se quisermos garantir uma vida melhor à população brasileira. O
governo federal não tem como resolver todos os problemas desse país enorme e
heterogêneo, tampouco os estados. A melhoria da cidadania começa na
transformação da vida citadina, com prefeituras melhores e a construção de
elites políticas mais qualificadas - afinal, grande parte da classe política
nacional advém e/ou depende das ligações com a esfera local.
Tomando como base as últimas eleições
municipais e o debate feito pelos principais polos partidários até agora,
avizinha-se um debate eleitoral pouco frutífero em prol da modernização da
gestão municipal. Não obstante, há ainda tempo para tentar modificar os rumos
dessa discussão e do embate político, em vez de ficar apenas na identificação
dos políticos que merecem ganhar - ou nos que têm de perder, que tem sido nosso
primeiro cálculo atualmente. Melhorar a qualidade argumentativa da competição
eleitoral de 2024, ademais, pode ser uma forma de influenciar o que ocorrerá em
2026.
Podem ser destacadas aqui cinco questões
inescapáveis para adequação do municipalismo aos desafios do século XXI. A
primeira diz respeito à governança federativa. É fundamental melhorar a
articulação intergovernamental no país, em prol de um novo federalismo
cooperativo, incentivando mais as parcerias das prefeituras com os governos
estaduais e federal, bem como a cooperação intermunicipal. Os municípios não
resolverão muitos de seus problemas de forma autárquica e isolada.
Soluções regionalizadas, disseminação de boas
práticas locais por todo o território nacional e apoio da União e dos governos
estaduais para coordenar melhor a descentralização e reduzir as desigualdades
territoriais são essenciais. Em poucas palavras, os governos locais são
peça-chave na resolução dos problemas brasileiros, mas não são ilhas e não
podem ser tratadas enquanto tais pelas instâncias federal e estadual.
Um segundo tema central para a modernização
da agenda municipalista está no fortalecimento das relações dos governos
municipais com a sociedade local. Houve um tempo no pós-1988 em que mecanismos
de democratização, como conselhos e orçamentos participativos, expandiram-se
bastante pelo país afora. Todavia, esse processo democratizador está em refluxo
faz mais de uma década. Não que todos esses instrumentos fossem perfeitos. Só
que agora tem havido um aumento da privatização do espaço público, seja pela via
do crime organizado, seja por meio de muros que separam o andar de cima do
andar de baixo da escala social. O apartheid territorial está aumentando nas
cidades brasileiras, especialmente nas áreas metropolitanas.
A preparação dos governos municipais para os
desafios do século XXI passa necessariamente pela ampliação das formas de
consulta, participação e, sobretudo, de diálogo entre os desiguais. A sociedade
pode aportar muito de seu conhecimento e capilaridade às políticas públicas
locais. Além disso, os instrumentos de transparência, accountability e de
decisão coletiva reduzem as chances de concentração de poder em poucos grupos,
algo que aumenta a desigualdade, bem como a miopia para enfrentar problemas
mais profundos e de longo prazo.
Um terceiro vetor modernizador dos municípios
refere-se à melhoria das capacidades estatais locais. Os cidadãos querem e
merecem serviços públicos de maior qualidade, porém tal processo não deriva da
mera vontade política dos governantes. A profissionalização da burocracia, o
uso de evidências sobre as políticas públicas e a adoção de instrumentos de
planejamento e gestão são substitutos do clientelismo, do personalismo e da
descontinuidade administrativa que, infelizmente, ainda são muito fortes no plano
local.
Mais desafiador ainda é sair da lógica
imediatista e meramente curativa, predominante em todo o país, e fortalecer o
modo preventivo de governo, a quarta mola propulsora de transformação proposta
aqui. Os problemas estruturais do século XXI, como a questão climática, a
remodelação urbana da vida nos grandes centros e a adoção de políticas
específicas a grupos etários ou vulneráveis, como nas áreas de primeira
infância e dos idosos, são temáticas de longo prazo e que exigem ações antes
que a emergência tome conta da agenda. Os municípios serão os mais afetados por
essa nova agenda e ainda engatinham neste debate, embora os recentes eventos
climáticos extremos realcem o alto custo de se atrasar neste processo.
A agenda modernizadora do municipalismo, por
fim, passa pelo diagnóstico de que não há um único tipo de município no Brasil,
de modo que haverá mais um cardápio de soluções do que uma receita de bolo. É
preciso pensar nas singularidades dos municípios amazônicos, das localidades do
semiárido, das grandes cidades - e estas últimas terão um conjunto ainda maior
de desafios e necessidades de mudanças, mas seus governantes atuais, no geral,
estão bem atrasados neste debate.
Mais do que nomes, precisamos de novas ideias
e projetos para o debate eleitoral de 2024. Melhorar a governança municipal é
fundamental para garantir o bem-estar dos cidadãos e, com isso, fazer com que
acreditem que a democracia é a única forma de resolver os problemas coletivos.
A transformação do sistema político brasileiro começa com um debate mais
qualificado sobre o destino de nossas cidades. A questão é saber se um cenário
dominado pela polarização norteada pelas redes sociais e por um Centrão vitaminado
pelas emendas parlamentares permitirá esse salto rumo ao século XXI.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política
pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
PERFEITO! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
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