sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Fernando Abrucio* - Municípios precisam entrar no século XXI

Valor Econômico

A transformação do sistema político brasileiro começa com um debate mais qualificado sobre o destino de nossas cidades

As eleições municipais ganharam uma centralidade impressionante no sistema político brasileiro. Elas não só selecionam os governantes que vão gerir políticas públicas fundamentais para a garantia dos direitos dos cidadãos, como também são peças-chave para as estratégias eleitorais de políticos estaduais e federais, que imaginam ter um terreno mais sólido para suas ambições futuras caso tenham aliados fortes nos governos locais. A despeito dessa relevância, os últimos pleitos municipais têm sido marcados por um debate público que não enfrenta os principais desafios contemporâneos das cidades brasileiras.

A noção de que o município faz diferença na política e nas políticas públicas é muito recente no país. A história brasileira, desde a Independência, foi de sufocamento do poder local, dando mais poderes aos estados/províncias e/ou ao governo central/governo federal. A Constituição de 1988 alterou radicalmente essa rota, dando aos municípios o caráter de ente federativo, o que significou um repasse inédito de autonomia política, financeira e administrativa.

Junto com a autonomia vieram novas, amplas e desafiadoras responsabilidades. O fato é que o Brasil combinou uma forte expansão do Estado de Bem-Estar Social, antes muito restrito a poucos, com uma grande descentralização municipalista dos encargos. Não foi um processo fácil, uma vez que as municipalidades tinham poucas funções de garantia universal dos direitos dos cidadãos. A maior parcela das prefeituras funcionava tal qual a famosa Sucupira de “O Bem-Amado”, que fez sucesso na década de 1970 na TV Globo. Para quem não se recorda, a principal bandeira do prefeito Odorico Paraguaçu era tentar inaugurar um cemitério - e, ironicamente, ninguém morria na cidade. Tratava-se de uma excelente metáfora sobre o sentido dos governos municipais de então.

A maior parte dos municípios teve que se inventar como governos com políticas públicas amplas a partir da década de 1990. O balanço de mais 30 anos de municipalização de tarefas centrais do Estado de Bem-Estar Social brasileiro é duplo. Por um lado, ampliou-se o rol de serviços públicos, foram garantidos direitos que os cidadãos mais pobres nunca tinham experimentado na história, bem como os governos locais produziram inovações tanto no plano das políticas públicas - algumas delas depois disseminadas ao governo federal - como em termos de democratização do Estado. Por outro, no entanto, o saldo desse processo municipalista revela lacunas e insuficiências.

Na lista de problemas, destaca-se primeiramente que os resultados foram muito díspares entre as municipalidades. Ainda há muita heterogeneidade territorial no que se refere à capacidade de produzir políticas públicas com qualidade adequada. Na verdade, a maioria dos governos municipais tem carências significativas que os impede de avançar mais. Além dessa desigualdade federativa, após décadas com importantes inovações, o municipalismo parece ter perdido grande parte de seu ímpeto modernizador. Ao clientelismo tradicional somaram-se novas formas antirrepublicanas, como o poderio do crime organizado nas comunidades locais.

O enfraquecimento do federalismo cooperativo durante os governos Temer e Bolsonaro, ademais, reduziu a ajuda federal aos municípios mais frágeis e favoreceu uma lógica de mera sobrevivência individualista. A política local nos grandes centros também entrou, em boa parte, na mesma lógica polarizadora e dominada por temas secundários com ibope em redes sociais que cegam o debate público. Como corolário dessa nova fase de desafios ao municipalismo, surgiram novas questões no século XXI, ou alguns temas se tornaram mais complexos, o que, de todo modo, exigirá governos municipais muito mais preventivos, ágeis e capazes de construir amplas alianças para resolver tais problemas.

O fato é que os municípios precisam entrar no século XXI se quisermos garantir uma vida melhor à população brasileira. O governo federal não tem como resolver todos os problemas desse país enorme e heterogêneo, tampouco os estados. A melhoria da cidadania começa na transformação da vida citadina, com prefeituras melhores e a construção de elites políticas mais qualificadas - afinal, grande parte da classe política nacional advém e/ou depende das ligações com a esfera local.

Tomando como base as últimas eleições municipais e o debate feito pelos principais polos partidários até agora, avizinha-se um debate eleitoral pouco frutífero em prol da modernização da gestão municipal. Não obstante, há ainda tempo para tentar modificar os rumos dessa discussão e do embate político, em vez de ficar apenas na identificação dos políticos que merecem ganhar - ou nos que têm de perder, que tem sido nosso primeiro cálculo atualmente. Melhorar a qualidade argumentativa da competição eleitoral de 2024, ademais, pode ser uma forma de influenciar o que ocorrerá em 2026.

Podem ser destacadas aqui cinco questões inescapáveis para adequação do municipalismo aos desafios do século XXI. A primeira diz respeito à governança federativa. É fundamental melhorar a articulação intergovernamental no país, em prol de um novo federalismo cooperativo, incentivando mais as parcerias das prefeituras com os governos estaduais e federal, bem como a cooperação intermunicipal. Os municípios não resolverão muitos de seus problemas de forma autárquica e isolada.

Soluções regionalizadas, disseminação de boas práticas locais por todo o território nacional e apoio da União e dos governos estaduais para coordenar melhor a descentralização e reduzir as desigualdades territoriais são essenciais. Em poucas palavras, os governos locais são peça-chave na resolução dos problemas brasileiros, mas não são ilhas e não podem ser tratadas enquanto tais pelas instâncias federal e estadual.

Um segundo tema central para a modernização da agenda municipalista está no fortalecimento das relações dos governos municipais com a sociedade local. Houve um tempo no pós-1988 em que mecanismos de democratização, como conselhos e orçamentos participativos, expandiram-se bastante pelo país afora. Todavia, esse processo democratizador está em refluxo faz mais de uma década. Não que todos esses instrumentos fossem perfeitos. Só que agora tem havido um aumento da privatização do espaço público, seja pela via do crime organizado, seja por meio de muros que separam o andar de cima do andar de baixo da escala social. O apartheid territorial está aumentando nas cidades brasileiras, especialmente nas áreas metropolitanas.

A preparação dos governos municipais para os desafios do século XXI passa necessariamente pela ampliação das formas de consulta, participação e, sobretudo, de diálogo entre os desiguais. A sociedade pode aportar muito de seu conhecimento e capilaridade às políticas públicas locais. Além disso, os instrumentos de transparência, accountability e de decisão coletiva reduzem as chances de concentração de poder em poucos grupos, algo que aumenta a desigualdade, bem como a miopia para enfrentar problemas mais profundos e de longo prazo.

Um terceiro vetor modernizador dos municípios refere-se à melhoria das capacidades estatais locais. Os cidadãos querem e merecem serviços públicos de maior qualidade, porém tal processo não deriva da mera vontade política dos governantes. A profissionalização da burocracia, o uso de evidências sobre as políticas públicas e a adoção de instrumentos de planejamento e gestão são substitutos do clientelismo, do personalismo e da descontinuidade administrativa que, infelizmente, ainda são muito fortes no plano local.

Mais desafiador ainda é sair da lógica imediatista e meramente curativa, predominante em todo o país, e fortalecer o modo preventivo de governo, a quarta mola propulsora de transformação proposta aqui. Os problemas estruturais do século XXI, como a questão climática, a remodelação urbana da vida nos grandes centros e a adoção de políticas específicas a grupos etários ou vulneráveis, como nas áreas de primeira infância e dos idosos, são temáticas de longo prazo e que exigem ações antes que a emergência tome conta da agenda. Os municípios serão os mais afetados por essa nova agenda e ainda engatinham neste debate, embora os recentes eventos climáticos extremos realcem o alto custo de se atrasar neste processo.

A agenda modernizadora do municipalismo, por fim, passa pelo diagnóstico de que não há um único tipo de município no Brasil, de modo que haverá mais um cardápio de soluções do que uma receita de bolo. É preciso pensar nas singularidades dos municípios amazônicos, das localidades do semiárido, das grandes cidades - e estas últimas terão um conjunto ainda maior de desafios e necessidades de mudanças, mas seus governantes atuais, no geral, estão bem atrasados neste debate.

Mais do que nomes, precisamos de novas ideias e projetos para o debate eleitoral de 2024. Melhorar a governança municipal é fundamental para garantir o bem-estar dos cidadãos e, com isso, fazer com que acreditem que a democracia é a única forma de resolver os problemas coletivos. A transformação do sistema político brasileiro começa com um debate mais qualificado sobre o destino de nossas cidades. A questão é saber se um cenário dominado pela polarização norteada pelas redes sociais e por um Centrão vitaminado pelas emendas parlamentares permitirá esse salto rumo ao século XXI.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

 

Um comentário:

Daniel disse...

PERFEITO! Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!