O Estado de S. Paulo
Não basta saber se haverá desordem fiscal ou contas no azul. É essencial saber onde estaremos num mundo transformado pelas mudanças climáticas e o avanço da revolução digital, por exemplo
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
prometia um déficit zero no Orçamento. O presidente indicou duas vezes que isso
era impossível. Abriu-se uma grande discussão.
O que é melhor para o País, perguntam os
economistas? Equilíbrio fiscal, baixa taxa inflacionária, crescimento estável
ou garantia de uma rede de proteção social e infraestrutura? É um debate
clássico, que tem raízes até no nosso inconsciente infantil, marcado pelas
histórias da cigarra e da formiga e da frágil casa dos três porquinhos.
Para além da discussão puramente econômica,
há outros fatores que também são discutidos ou fatores que nem aparecem no
debate.
Os também clássicos temas discutidos
referem-se ao comportamento de um governo em ano eleitoral. Sempre que houver
um dilema entre austeridade e aumento de gastos, a tendência no período de
eleições é optar pelo segundo.
Mas não é uma discussão tranquila. Há uma frase inspirada num analista americano que costuma explicar o resultado eleitoral assim: É a economia, estúpido!
Porém, se ela fosse totalmente verdadeira,
como explicar a vitória do peronismo na Argentina, no meio de uma profunda
crise econômica? Como explicar as vitórias eleitorais do chavismo na Venezuela
já com o país em decadência?
Existem maneiras de driblar essa frase. O
populismo sabe fazê-lo muito bem, buscando no auge de uma crise econômica
garantir vantagens para alguns setores. Bolsonaro concedeu bolsas para taxistas
e caminhoneiros com esta esperança de garantir a fidelidade de um grupo
eleitoral. E talvez a tenha garantido, só que não conseguiu convencer os
setores mais pobres acostumados a associar o Bolsa Família aos governos de
esquerda.
Mas existem, também, temas sobre o orçamento
que não são discutidos aqui. Na China, segundo os jornais ocidentais, houve um
debate porque o orçamento prioriza carros elétricos e semicondutores, apesar
das grandes necessidades no campo da habitação. Em Portugal, na véspera da
queda do primeiro-ministro, o Partido Comunista lançou um manifesto criticando
o orçamento por achar que o Partido Socialista privilegia a direita e vai
privatizar a TAP.
No Brasil não há discussão sobre prioridades,
assim como há pouca discussão sobre o papel da iniciativa privada e dos
investimentos estrangeiros. Às vezes, a impressão que se tem é de que tudo terá
de ser feito com recursos do governo.
Já mencionei algumas vezes aqui o livro
Mission Economy, da italiana Mariana Mazzucato. Ela mostra como a parceria
entre governo e iniciativa privada é fértil, inclusive na conquista da Lua.
No caso do capital estrangeiro, seria
decisivo na infraestrutura digital. A China tem um ambicioso projeto da Rota da
Seda Digital. Qual o papel chinês no Brasil? Elon Musk oferece conexão com a
internet para regiões distantes. Pela minha experiência, no coração da
Amazônia, no Xingu, vi que funciona. Um simples bar de estrada, a caminho de
São José do Xingu, tinha uma conexão tão boa quanto a minha no Rio de Janeiro.
A dona do bar me disse que comprou a conexão de Musk, pela internet. Cobra R$ 5
para compartilhá-la com o cliente e com isso já vai pagar o investimento.
Outro aspecto sério da infraestrutura: as
mudanças climáticas. O País precisa se preparar melhor para elas, porque está
perdendo vidas e dinheiro. Um projeto de mitigação dos desgastes destinado
também a aumentar a resiliência de nossas cidades é fundamental. De posse dele,
seria possível ainda buscar financiamento.
Um campo que parece mais tranquilo é o da
transição energética, por causa das condições favoráveis do Brasil. Mas tanto a
adaptação do País às mudanças climáticas como a infraestrutura digital são
elementos chave de um orçamento.
Será, porém, esse o ângulo do debate no
Congresso? Ou vão prevalecer emendas destinadas a atender a interesses
regionais, sem conexão com o salto de qualidade que o País precisa dar nos
próximos anos?
Naturalmente que a questão do déficit é
importante e vai sofrer a influência do ano eleitoral. Mas a questão das
prioridades também sofrerá. E, o que é pior, há uma abundante discussão sobre o
déficit zero e uma escassa abordagem das prioridades.
Não basta saber se haverá desordem fiscal ou
contas no azul. A condição de estabilidade ou dívidas não explica tudo.
Endividados ou não, é essencial sabermos onde estaremos num mundo transformado
pelas mudanças climáticas e pelo avanço da revolução digital, para falar apenas
de duas variáveis decisivas.
Estou apresentando esses temas como
realidades estanques. Mas não são. O mundo digital e a Inteligência Artificial
poderiam representar uma enorme economia nos custos do governo. Alguém vai
parar para pensar nessa hipótese?
Da mesma maneira, um novo olhar sobre nossos
recursos naturais desvendaria um potencial econômico muito maior.
O mundo mudou rapidamente. Temo que os
orçamentos continuem a ser a monótona relação de gastos como no passado. Por
outro lado, da maneira como são conduzidos e votados, acabam sendo algo não só
impossível de influenciar, como pouquíssimo atraente para o debate social.
Infelizmente.
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