sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Rogério Furquim Werneck - O arcabouço fiscal como ele é

O Globo

Não faltou quem se permitisse acreditar que as metas fiscais anunciadas eram para valer

Para que a ruidosa discussão sobre o abandono da meta de déficit primário zero em 2024 seja corretamente entendida, é preciso ter clareza sobre a real natureza do novo arcabouço fiscal proposto pelo governo e, afinal, aprovado pelo Congresso em substituição ao teto de gastos.

A esta altura, já não há como ter dúvida de que se trata de um mal disfarçado esquema de expansão fiscal inconsequente. Simulações de dinâmica de dívida sugerem que, do manejo das contas públicas que o governo pretende adotar, decorrerá um salto de pelo menos 10 pontos percentuais na dívida bruta como proporção do PIB ao longo do atual mandato presidencial.

De menos de 73% do PIB, no final de 2022, para 83% do PIB, ou mais, ao fim de 2026.

Para atenuar resistências a tamanha expansão fiscal, o governo anunciou, no final de março, como prova de seu pretenso compromisso com a responsabilidade fiscal, que o déficit primário ficaria limitado a 0,5% do PIB em 2023, seria zerado em 2024 e convertido em um superávit de 0,5% do PIB em 2025, que chegaria a 1% do PIB em 2026.

O que boa parte da opinião pública não percebeu é quão pífias eram tais metas fiscais. No frigir dos ovos, tomados os déficits e superávits prometidos, o esforço acumulado de geração de superávit primário ao longo de todo o mandato não passaria de 1% do PIB.

Um valor irrisório, quando se tem em conta que o superávit primário anual requerido para manter constante a dívida bruta como proporção do PIB é de pelo menos 1,5% do PIB.

Em outras palavras, as metas fiscais do governo gerariam ao longo de quatro anos não mais que dois terços do superávit primário requerido por ano para manter o endividamento público estável. Não é de se espantar que a dívida como proporção do PIB esteja fadada a dar o salto que se antevê.

Mas a verdade é que, por incrível que pareça, o anúncio esperto de metas fiscais pífias funcionou em alguma medida. Parte da opinião pública — e do mercado, é bom que se diga — permitiu-se ficar bem impressionada. Deixou-se levar pelo ilusionismo. As metas mostraram-se eficazes como camuflagem. Conseguiram embaçar a percepção da extensão da expansão fiscal que o governo de fato deflagrara.

Pois não é que, agora, o Planalto parece ter decidido chutar o pau da barraca e anunciar que nem a meta pífia de zerar o déficit primário em 2024 o governo está disposto a cumprir? Além de outras consequências mais sérias, isso deverá afinal permitir que quem achava que as metas eram para valer passe a perceber o arcabouço como de fato é.

O governo agora quer cortar pela metade — de 1% para 0,5% PIB — seu pífio esforço de geração de superávit primário ao longo do mandato. O que poderá gerar uma perda fatal de credibilidade, que venha a dar fim súbito ao jogo arriscado a que o governo se vem permitindo, ao se mostrar tão escancaradamente hesitante no seu suposto compromisso com as metas fiscais irrisórias que tanto alardeou.

Crescem as evidências de que já vem havendo perda substancial de credibilidade. O boletim Focus referente a 6 de abril, publicado logo após o anúncio das metas fiscais, já mostrava valores medianos esperados para o resultado primário anual, de 2023 a 2026, que indicavam, em vez de superávit primário acumulado de 1% do PIB ao longo do mandato presidencial, déficit acumulado de 2% do PIB.

No boletim mais recente, referente a 6 de novembro, esse déficit acumulado esperado já chega a 2,95% do PIB.

O presidente já deixou claro que não está disposto a insistir no cumprimento de uma meta fiscal que o obrigue a cortar gastos em um ano eleitoral. Não percebeu ainda que, se abandonar a meta, comprometerá de vez a já minguada credibilidade da política fiscal e cerceará o espaço com que ainda conta o Banco Central para continuar a reduzir a taxa básica de juros. E reforçará as razões para desaceleração da expansão da economia em 2024.

Será o Planalto ainda capaz de dar o devido peso a tais considerações antes de ceder às pressões pelo abandono da meta fiscal? Tudo indica que não.


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