terça-feira, 21 de novembro de 2023

Humberto Saccomandi - Milei terá pouca margem de erro na economia e próximos meses serão decisivos

Valor Econômico

Ganhar eleição foi a parte fácil. A parte difícil começa agora. A partir de hoje, atenções estarão voltadas às indicações econômicas e políticas que o presidente eleito dará

Presidente eleito da Argentina, o libertário Javier Milei assumirá, em 10 de dezembro, em meio a uma gravíssima crise econômica. Ele prometeu, em seu discurso de domingo à noite, “mudanças drásticas”, sem gradualismo.

Seu plano econômico para o curto prazo não é claro ainda. E ele terá pouco tempo para aplicá-lo e quase nenhuma margem de erro. Os riscos são enormes. Os próximos seis meses serão decisivos.

A vitória de Milei encerra um ano em que o atual governo de esquerda basicamente adiou o enfrentamento de crise do país e fechou suas contas com dinheiro emprestado, adiando pagamentos e imprimindo moeda. Essa longa protelação, que agravou a situação econômica, acaba agora.

Milei receberá do kirchnerismo a mãe de todas as heranças malditas. O país está em recessão, com previsão de queda de cerca de 3% do PIB neste ano. A inflação em 12 meses está em 142,7%. O déficit fiscal primário deve fechar o ano em 2,5%. E o país praticamente não tem mais reservas internacionais.

A Argentina está à beira de uma clássica crise de balanço de pagamentos, quando o país não tem mais dólares para honrar seus compromissos externos. Na semana passada, Bolívia e Paraguai suspenderam as exportações de banana até que os importadores argentinos quitem os pagamentos atrasados.

Há escassez de combustíveis, por falta de dólares para importação. O risco nos próximos meses é de um novo calote na dívida, o que atrasaria ainda mais o processo de normalização da economia.

A vitória clara de Milei elimina parte da incerteza política, mas não a incerteza econômica. O libertário foi muito eloquente sobre seus planos de longo prazo, como a eliminação do Banco Central, mas muito vago sobre como pretende enfrentar os desafios dos próximos meses, que serão decisivos para ele e para o país.

Oito anos atrás, o centrista Mauricio Macri assumiu a Presidência com um cenário não tão ruim na economia. Ele esperava que sua vitória gerasse um clima de otimismo, que traria investimentos e dólares ao país, permitindo um ajuste gradual da economia, menos doloroso. Isso não aconteceu.

Desta vez, Milei promete um ajuste drástico, um choque liberal, mas sem dar detalhes. Seus desafios mais imediatos são o déficit fiscal (que está por trás da inflação alta) e a falta de dólares. A expectativa é que ele promova um corte duro de gasto público, para reduzir a necessidade de financiamento do Estado. Mas fazer isso em meio a uma recessão é difícil, pois pode agravar mais a crise no curto prazo e haverá resistência política e social.

Ele promete também cortar impostos, o que implicaria na necessidade de um ajuste fiscal ainda maior. Um plano otimista demais pode gerar uma onda de desconfiança nos mercados, como aconteceu no Reino Unido em 2022 e que acabou derrubando a então premiê libertária Liz Truss.

Sobre a recomposição das reservas, as opções são igualmente poucas e difíceis. A Argentina não deverá ter acesso tão cedo a financiamento externo. Resta tentar ampliar as exportações, cortar ainda mais as importações (o que vai gerar mais desabastecimento) ou dar um novo calote na dívida.

Além do plano econômico adequado, o novo governo precisará ainda de habilidade política para implementá-lo. As prováveis medidas de ajuste, como cortes nos vários subsídios (à energia, aos transportes etc.), devem piorar a situação econômica no curto prazo e farão a Argentina empobrecer.

Deverá haver muita tensão social no primeiro semestre do ano que vem, com protestos e greves. O Congresso ficará sob pressão e haverá resistência política aos ajustes. O peronismo, na oposição, tem um histórico de desestabilizar governo rivais.

Sem experiência de governo, há muitas dúvidas em relação à capacidade de Milei de convencer os argentinos a aceitarem os sacrifícios. Até agora, ele mostrou mais talento para destruir pontes do que para construí-las. Isso ficou evidente na primeira frase de seu discurso da vitória, quando deu “boa noite a todos os argentinos de bem”. Milei agora é o presidente eleito de todos os argentinos, e não apenas daqueles que ele considera do bem.

Por isso, é grande na Argentina a expectativa sobre qual será o papel do ex-presidente Macri no futuro governo. Apesar de Milei ter ganho a Presidência, o novo governo será de coalizão com Macri, algo também inédito na história recente do país.

Macri foi fundamental para a vitória de Milei. O libertário teve cerca de 30% dos votos no primeiro turno. Boa parte dos 25 pontos que ele agregou nesse segundo turno foram bancados pelo apoio de Macri. O ex-presidente, porém, é contrário a parte das propostas de Milei, como a dolarização total da economia. Economistas ligados a Macri trabalham numa proposta de liberalização maior das contas em moeda estrangeira, para tentar trazer para o sistema financeiro os bilhões de dólares que os argentinos guardam em casa.

O partido de Milei terá apenas 12% dos deputados, 11% dos senadores no Congresso e nenhum governador. Precisará do apoio da bancada ligada a Macri para aprovar qualquer projeto, e muitas de suas promessas de campanha precisarão passar pelo Legislativo.

Para Macri, o abraço com Milei é altamente arriscado. Primeiro porque é incerto se o presidente eleito aceitará a tutela de Macri. Além disso, se o futuro governo der certo, os louros tenderão a ficar com Milei, e o partido de Macri corre o risco de se tornar num apêndice de uma nova direita. Se der errado, Macri será responsabilizado.

Além de fazer tudo certo na política e na economia, o que já é uma tarefa hercúlea, Milei terá ainda de torcer pelo imponderável. Ele precisa de uma boa safra agrícola no início de 2024, que traria dólares à economia e facilitaria o ajuste. Uma nova seca, como a que ocorreu neste ano, poderá inviabilizar a retomada de economia.

Para Milei, ganhar a dura disputa eleitoral foi a parte fácil. A parte difícil começa agora. Apesar de a posse ser em 10 de dezembro, a partir de hoje todas as atenções estarão voltadas às indicações econômicas e políticas que o presidente eleito dará. A Argentina não tem tempo. O governo Milei de fato começa hoje.

 

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