Correio Braziliense
A Liberdade Avança e Juntos pela Mudança têm 20
deputados a mais do que os peronistas. Essa aliança é a chave para a
governabilidade
Se a vitória de Javier
Milei nas eleições argentinas foi incontentável, com uma diferença de
quase 3 milhões de votos a mais que Sergio Massa, o futuro de seu governo ainda
é uma grande incógnita. Tem um mês para montar seu governo e formar maioria no
Congresso. Nesse ínterim, terá que administrar as incertezas econômicas do
país, com uma corrida atrás de dólar e a inflação em disparada.
No seu primeiro dia como presidente eleito, Milei reiterou a intenção de fechar o Banco Central, dolarizar a economia e pôs na ordem do dia as privatizações, a começar pela petroleira do país. Milei quer privatizar, também, a Telám — a TV pública do país — e a Rádio Nacional. E pretende visitar Israel e os Estados Unidos antes de tomar posse, marcada para 10 de dezembro.
Precisa formar maioria no Congresso,
principalmente na Câmara. A coligação de partidos peronistas União pela Pátria,
do candidato Sergio Massa, perdeu 10 assentos, mas seguirá sendo a maior
bancada da Casa, com 108 das 257 cadeiras. A segunda força, com 93 deputados, é
a coalizão de centro-direita Juntos pela Mudança, cuja candidata Patricia
Bullrich ficou de fora do segundo turno, mas apoiou o presidente eleito. O
partido A
Liberdade Avança, de Milei, elegeu 35 deputados.
Juntos, A Liberdade Avança e Juntos pela
Mudança, porém, têm 20 deputados a mais do que os peronistas. Essa aliança com
os liberais-conservadores é a chave para a estabilidade política do país e a
sustentação do programa econômico de Milei. O ex-presidente Mauricio Macri
(2015-2019), que o apoiou, é uma liderança influente no Congresso. No segundo
turno, foi um fator de moderação do discurso de Milei. Entretanto, os fantasmas
dos ex-presidentes Raúl Alfonsin e Fernando de La Rúa, da União Cívica Radical,
que derrotaram o peronismo nas urnas, mas não terminaram o mandato, assombram
Milei.
Resiliência peronista
A vitória de Alfonsín havia imposto ao
peronismo a primeira derrota nas urnas, com o país quebrado, humilhado e
frustrado. Em 1985, o Plano Austral tentou corrigir o curso, com controle de
preços, salários e câmbio, redução dos gastos do Estado e freio à emissão
monetária.
Seguiram-se os Planos Austral II e Primavera:
congelamento de preços, tarifas, salários e câmbio. O fracasso desses planos
produziu hiperinflação, escalada do dólar, desemprego, recessão e desgaste
político. Alfonsín renunciou cinco meses antes de concluir o mandato, no dia 8
de julho de 1989. O peronista Carlos Menem assumiu a Presidência com um
programa neoliberal.
Em 1999, 10 anos depois, as denúncias de
corrupção e a deterioração do quadro econômico-social no segundo mandato de
Menem levaram o eleitorado a votar, novamente, contra o peronismo. As eleições
foram vencidas pela Alianza UCR-Frepaso, Fernando De la Rúa-Carlos
"Chacho" Álvarez, que se mostrou incapaz de governar.
Domingo Cavallo, que comandou o programa de
reformas neoliberais de Menem, retornou ao Ministério da Economia, em 2001, e
recebeu do Congresso a missão buscar a estabilidade, com a receita
"blindagem" financeira, aumento impostos, reestruturação da dívida e
deficit zero. A deterioração social e a desordem econômica, porém, atingiram
níveis insustentáveis, com saques e violentas manifestações. Sob a pressão dos
"panelaços", Cavallo e De la Rúa renunciam.
Em duas semanas, entre 20 de dezembro de 2001
e 2 de janeiro de 2002, a Argentina teve cinco presidentes. O peronista Ramón
Puerta, presidente do Senado, que assumiu porque "Chacho" Alvarez
havia renunciado; Adolfo Rodríguez Saá, governador da província de San Luis,
eleito presidente provisório, que decretou a moratória e, depois, renunciou;
novamente o presidente do Senado Ramón Puerta, que após 15 minutos entregou o
cargo; o peronista Eduardo Camaño, presidente da Câmara, como designa a Constituição,
para os casos de renúncia do presidente do Senado.
Finalmente, a Assembleia Legislativa escolheu
o senador peronista Eduardo Duhalde como novo presidente, para completar o
mandato de De la Rúa, até dezembro de 2003. Em seu discurso ao Congresso, logo
após a eleição, ele anunciou o fim da conversibilidade que mantinha o peso
atrelado ao dólar há 10 anos. Além disso, manteve a moratória de sua dívida
externa.
Duhalde assumiu a Presidência de um país
desnorteado. Sua prioridade era reconstruir a governabilidade. Substituiu o
apoio do establishment econômico-financeiro por uma aliança entre o setor
produtivo nacional e com o peronismo tradicional, "pesificou" a
economia, mas, pela primeira vez na história, a Argentina conheceu a fome e a
proliferação da miséria.
Com a posse do ministro da Economia Roberto
Lavagna, em 2002, o país começou a se recuperar. Inicia-se um breve ciclo de
crescimento econômico.
Nas eleições de 2003, enfrentam-se propostas
antagônicas para a Argentina, polarizadas nas candidaturas de Néstor Kirchner
(centro-esquerda) e Carlos Menem (centro-direita), ambos peronistas. Vitorioso
após a desistência deste último, Kirchner assegura a governabilidade e o
crescimento do país, que chamou de "refundação" da Argentina, que se
esgotou agora, com a derrota de Massa.
Será o fim do peronismo?
Eu acho que não.
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