Folha de S. Paulo
Olhemos para o que ele traz em termos de
ideologia e programa, ao contrário de Bolsonaro, ele os tem
Vamos deixar de lado as bizarrices de Javier Milei.
Olhemos para o que ele traz em termos de ideologia e programa. Ao contrário
de Bolsonaro,
ele os tem. Para mim é duplamente curioso, porque o meio
anarcocapitalista e libertário é de onde eu vim. Os autores que
Milei cita —Mises, Rothbard, Friedman— são os autores que eu lia e discutia
ativamente na minha formação.
Hoje não sou mais um libertário, e sim um liberal. Vejo a atitude
revolucionária de querer abolir o Estado, suas garantias e suas leis como algo
que reduziria a liberdade da maioria. Estado e mercado precisam um do outro.
O próprio Milei, diga-se, é o primeiro a
admitir —por exemplo, em sua extensa entrevista para a The Economist em 04 de
setembro— que não tentará abolir o Estado. Deixará a parte "anarco"
de sua ideologia como uma utopia imaginária, não um plano de governo.
O que ele pretende fazer concretamente é reduzir gastos públicos em 15% do PIB,
déficit primário zero já no primeiro ano, reforma trabalhista extensa, privatizações
a rodo, abertura comercial unilateral e, é claro, a dolarização.
O mérito da agenda libertária é dar um tratamento de choque na economia que
a deixe mais eficiente. Um dos perigos é cortar no lado mais fraco: corte de
gastos sociais e negligência dos serviços públicos de que os mais vulneráveis
dependem. Milei garante que não fará isso. Os próprios países que Milei cita
como inspiração —Irlanda, Austrália e Nova Zelândia— têm Estados que investem
no social. Os três têm, por exemplo, saúde gratuita ou fortemente subsidiada
para todos. Dá para confiar? Em breve saberemos.
No lado político, Milei, no discurso
de vitória, não só não falou em eliminar a oposição ou fazer
caça às bruxas, como adotou a linha oposta: "Todos aqueles que querem
somar à nova Argentina serão
bem-vindos. Não importa de onde vieram, não importa o que fizeram antes, não
importa que diferença tenhamos". Isso é positivo. Mas é óbvio que a
oposição virá forte no Congresso e em grupos da sociedade civil.
Caso alguma das suas propostas centrais seja inviabilizada
pelo Congresso, ele já anunciou que fará plebiscitos. E para isso
ele precisará manter a popularidade em alta.
A chance de tudo dar errado é enorme. A parte central
da proposta de Milei, a dolarização —ou melhor, o fim do Banco
Central Argentino e a livre circulação de moedas no país— pode dar errado já no
início. Economistas discutem o quão factível é acabar com o peso sem que o
governo tenha reservas de dólares. Se não conseguir um mínimo de confiança do
mercado e provocar corrida bancária, a convulsão social pode já forçá-lo a sair
do poder.
Idem para o fim de subsídios para serviços públicos, ou uma privatização mal
feita que encareça ou piore o serviço; pautas que podem enfurecer uma parte
expressiva do eleitorado. É fácil ser a favor de cortes no papel, difícil é
quando os cortes chegam no seu bolso.
Ou seja, é uma opção de alto risco para os argentinos, mas compreensível quando
lembramos que o "baixo risco" era se resignar à catástrofe econômica e
social. Boa sorte aos hermanos!
Concorde-se ou não com sua agenda, a eleição de Milei guarda uma lição. A
direita atual, a direita que cresce, não é tecnocrática; ela parte de uma visão
moral que empodera os indivíduos e busca fazer sentido para o cidadão comum;
seja na versão libertária, seja na reacionária. A esquerda ainda não tem uma
resposta à altura. Apelar para o medo de desmantelar o sistema vigente, quando
esse mesmo sistema está em xeque na opinião pública, não a levará muito longe.
O povo tolera muita bizarrice em nome de um sonho.
Pode ser.
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