Valor Econômico
As reiteradas indicações de intolerância e prepotência
política nas duas casas do Congresso Nacional expressam a mentalidade dos régulos
de província
Duas palavras de duas sílabas e de quatro
letras. Esse, ao que parece, é o enigma pendular da República neste momento.
Quem a preside? Nas eleições de 2022 o eleito foi Lula. Mas as miudezas
visíveis e invisíveis do poder dão a impressão de que é Lira, presidente da
Câmara dos Deputados, quem age como se mandasse.
Por meio dele o Legislativo minimiza o
Executivo. Há uma função histórica nessa anomalia: exaurir a competência social
que a presidência da república pode e deve ter, em relação a outras
competências tópicas e subsidiárias: econômica, militar e a propriamente
política.
Essa minimização tem funcionado como meio de garantia de uma estrutura de poder que é a base de um modelo de economia: o do crescimento econômico em detrimento do desenvolvimento social. Uma técnica política de assegurar lucro extraordinário dos empreendimentos econômicos com o questionamento da legitimidade das reivindicações sociais.
O modelo legislativo dessa anomalia é o do
primado do Centrão, que nos remete à velha tradição da política brasileira, a
do município como seu fundamento último e sua forma elementar e limitada. Como
nos mostrou Victor Nunes Leal, ministro do STF cassado pela ditadura militar,
em seu livro “Coronelismo, enxada e voto”. É claro que essa estrutura
fundamental do poder se mantém apesar das mudanças e atualizações de suas
formas de manifestação e de funcionamento.
As reiteradas indicações de intolerância e
prepotência política nas duas casas do Congresso Nacional, a partir do último
período legislativo, expressam a mentalidade dos régulos de província e as
limitações de horizontes dos políticos oriundos do localismo político contra o
primado da nação. Na CPI da Covid, na CPI da intentona de 8 de janeiro, na CPI
do MST, o que se viu é que o Estado brasileiro ficou reduzido a um sistema de
barganhas e a uma mentalidade de referência pobre de alternativas e de clareza
sobre o que é a política. As comissões de inquérito revelaram os poderes
articulados contra as manifestações democráticas dos movimentos sociais e das
reivindicações sociais que por seu intermédio se expressam. O que temos visto é
a vitalidade do Brasil arcaico e retrógrado. O Brasil sem futuro.
Volta e meia, na estratégia do atraso social
da política brasileira, para viabilizar a economia da ordem sem progresso, tem
havido a invisibilidade do “outro” como personagem principal do poder.
O protótipo desse outro em nossa história
republicana é Pinheiro Machado, pecuarista e advogado gaúcho e general
honorário do Exército. Ele deixou um elenco de histórias que o definem como
símbolo do poder paralelo, o poder do outro. Essas histórias procuravam dar
visibilidade ao poderoso politicamente invisível.
A chave desse perfil é o que se conta do que
o marechal Hermes da Fonseca, ao deixar a presidência, teria dito ao seu
sucessor, Wenceslau Brás: “Olha, Wenceslau, o Pinheiro é tão bom amigo que
chega a governar pela gente”. Era hábil e prudente.
Em 1915, uma multidão furiosa o esperava à
porta do Senado. O cocheiro que o conduzia perguntou-lhe como deveria fazer e
recebeu esta recomendação sábia: “Nem tão devagar que pareça afronta, nem tão
depressa que pareça medo”. Pinheiro Machado foi assassinado nesse mesmo ano.
Seu segredo era criar dependentes políticos,
articular favores do poder para fazê-lo, e saber encenar a circunstância de
poder presumido em cada ato. Embora não só no Brasil, aqui o poder tem muito de
faz de conta. Quem faz de conta que tem poder facilmente arruma cúmplices e
coadjuvantes, cujo desempenho e cuja presunção criam poderes reais. Vimos isso
durante o governo que terminou no dia 31 de dezembro de 2022.
Já nos dois primeiros governos do PT não
houve a precaução de negociar os termos da frente política antes da eleição. O
Centrão achou que chegara ao poder. Os representantes do Brasil arcaico foram o
lado fantasma do governo. Mas o PT enganou-se, também, em relação às ambições
de suas facções
Já Bolsonaro inovou na invisibilidade, até
oficialmente, com o orçamento secreto, e outras indicações de governo paralelo.
Guedes, da Economia, teve a liberdade decorrente da prepotência bolsonarista,
das violações ostensivas como no caso trágico da pandemia de covid, da criação
de uma situação de insegurança e medo, de um poder falso e teatralizado.
O terceiro governo Lula defronta-se com o seu
próprio e atual governo invisível personificado por Lira e os poderios do
Centrão. O Centrão faz política como se a nação fosse um município do interior.
Mas Lula vem da tradição do sindicalismo de negociação. Mais do que qualquer
outro político brasileiro ele está voltando quando os outros estão indo.
Veremos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
■Para que ficar cego, surdo e negar os fatos::
ResponderExcluir▪Lula é Centrão desde os tempos em que era sindicalista.
Lira/Lula
ResponderExcluirMuito iguais!
O que é que muda?
Bolsonaro era do Centrão, e se elegeu presidente discursando contra o Centrão e contra a Política e os políticos tradicionais, prometendo a NOVA POLÍTICA. Em pouco tempo, entregou o Gabinete Civil, a alma do governo, para o Centrão.
ResponderExcluirLula NUNCA foi do Centrão, e se elegeu presidente fazendo promessas aos trabalhadores, mas sempre valorizando a Política e se apresentando como um ANIMAL POLÍTICO. Aceitou o Centrão nos seus governos, justificando que precisava do apoio político deste grupo. Vejo Lula como SÓCIO deste grupo quando os interesses mútuos permitem convergências, especialmente quando Lula oferece vantagens ao Centrão (troca-troca ou como se queira chamar os vários tipos de negociação política).