quinta-feira, 23 de novembro de 2023

José Serra* - Compromisso com o saneamento

O Estado de S. Paulo

Câmara pode impedir uma brutal elevação de carga tributária no setor e recuperar a coerência no trato das políticas que o próprio Congresso promoveu

Desde sempre em minha atividade política olhei o saneamento como uma das mais importantes políticas públicas. Seja pelo aspecto ambiental, seja pelas questões relacionadas à saúde, seja pelo “direito” ao acesso a um copo de água de boa qualidade.

No Ministério da Saúde, a minha visão sobre o saneamento ficou ainda mais concreta. Em que pese seja muito bom ter indicadores, a interferência deste segmento na saúde da população é tão evidente que não precisamos nos alongar sobre algo tão óbvio.

Por tudo isso, mais de uma vez, mobilizei esforços para encerrar a cobrança de tributos e contribuições sobre a oferta de serviços de água e esgoto. Embora as empresas do setor não sejam contribuintes do ICMS e do ISS e, portanto, não estejam sujeitas ao seu pagamento, o PIS e a Cofins incidem sobre o setor.

O Congresso Nacional tem focalizado o saneamento como uma das políticas a merecer maior cuidado, dada a precária situação de 93 milhões de brasileiros que ainda não têm coleta de esgoto e dos 34 milhões que não acessam água potável, direitos universais. Em julho de 2020, a Lei n.º 14.026 foi sancionada com a responsabilidade de ser o novo Marco Legal do Saneamento. É verdade que a Lei n.º 11.445/2007 havia exercido este papel, mas tratava-se de reafirmar que o País considerava o setor de saneamento digno de ter um Marco Legal próprio.

Dois aspectos devem ser destacados na lei de 2020. O primeiro é a ambiciosa meta de universalização que prevê o atendimento de água potável a 99% da população e coleta e tratamento de esgotos a 90% dos brasileiros até 31 de dezembro de 2033, com possibilidade de flexibilização até 2040. O segundo é o deslocamento da ótica quase exclusivamente municipal, com a abertura para condução de soluções de caráter regional.

O setor parece pronto para ganhar uma intensidade jamais vista em seus negócios. A Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib) estima que somente os novos investimentos privados contratados após o novo marco sejam suficientes para que, até 2033, o Brasil atinja 91% de cobertura em termos de acesso à água e de 55,8% para 68% dos domicílios com adequado atendimento por coleta e tratamento de esgoto.

O setor está entabulando investimentos com um amplo leque de formatos. Concessões, PPPs e venda de participação acionária estão à testa dos formatos de destravamento dos investimentos mais substantivos. Há esforço muito grande de entidades públicas de âmbito local para fazer frente ao desafio colocado pelas metas de universalização.

O Plano Nacional de Saneamento Básico indica necessidade de recursos de R$ 46 bilhões anuais por 13 anos para garantir o cumprimento das metas. Certamente, os R$ 8,5 bilhões anuais anunciados no âmbito do PAC serão importantes, especialmente em locais de menor acesso aos financiamentos captados no mercado privado.

Sendo o saneamento um dos poucos polos seguros de expansão da economia brasileira, causou extrema estranheza que a PEC 45/2019 tenha tratado o setor como outro qualquer. O texto que chegou ao Senado Federal indicava que a alíquota aplicada ao setor seria a geral.

O problema é que essa mudança significa elevar a alíquota incidente sobre o valor adicionado do setor de 9,25% para 27%, tomadas as mais recentes falas oficiais ou de organizações que formularam a proposta de reforma. Este aumento de alíquota implicará elevação do preço da água de 18%, segundo cálculos divulgados pela Associação Brasileira dos Concessionários Privados de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).

No caso de não repassar a tributação ampliada aos preços, a redução dos patamares de investimento ficaria entre 40% e 47%, segundo a Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe). Obviamente, isso jogaria pelos ares qualquer esperança de cumprir as metas da universalização.

Há uma evidente falta de sintonia entre a PEC 45 aprovada na Câmara e o Marco Legal do Saneamento, da mesma forma aprovado no Congresso e balizador das decisões dos agentes econômicos. A aprovação do marco não poderia ser seguida de uma negativa e profunda mudança no tema mais sensível, justamente a tributação.

A mudança na incidência tributária sobre o setor ultrapassa custos e preços. A insegurança sobre as alíquotas que serão vigentes, num prazo que vai pelo menos até 2033, contamina toda a condição de avaliação de crédito com respeito às empresas do setor. As avaliações no mercado de capitais ficam igualmente muito mais incertas, com óbvio impacto sobre o lançamento de debêntures. É razoável prever que a nova situação gere uma paralisia nas decisões de investimentos.

Mas há a esperança de que o Congresso retome o compromisso do País com o saneamento, no resgate de uma de nossas maiores dívidas sociais. O texto da PEC aprovado pelo Senado Federal indicou a necessidade de um regime específico para o saneamento. Seguindo esse caminho, a Câmara pode impedir uma brutal elevação de carga tributária e recuperar a coerência no trato das políticas que o próprio Congresso promoveu.

*Economista

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