terça-feira, 21 de novembro de 2023

Lourival Sant’Anna - Uma espiral de incertezas

O Estado de S. Paulo

Reformas necessárias na Argentina incluem o corte de subsídios para serviços e produtos essenciais

A Argentina pode mergulhar esta semana em uma grande espiral de incertezas econômicas e políticas. A reunião entre o presidente eleito, Javier Milei, e o atual, Alberto Fernández teve de ser cancelada. Isso porque Fernández e o ministro da Economia, Sergio Massa, derrotado por Milei, não querem arcar com o custo político da maxidesvalorização do peso, demandada pela presidente eleito.

Massa falou em renunciar na noite de domingo, quando a reunião foi acertada entre Milei e Fernández. Parece ter recuado ontem. O governo estudava estender o feriado de segunda, Dia da Soberania Nacional, para essa terça-feira, para ganhar mais um dia de mercado fechado, já que os agentes econômicos não sabem como precificar o peso argentino.

Milei, por sua vez, anunciou “mudanças drásticas” em seu discurso de vitória: “A situação da Argentina é crítica. Não há lugar para fraquezas e meias tintas”. O presidente eleito voltou a falar em dolarização. A combinação de sua vitória com uma eventual saída de Massa da Economia poderia apressar a marcha rumo à hiperinflação.

A discussão sobre a “licença” de Massa até a posse de Milei, prevista para 10 de dezembro, criou a sensação de vazio político. Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, já haviam saído de cena nos últimos meses, para não atrapalhar Massa, diante de sua profunda impopularidade e do desastre econômico de seu governo, com uma inflação de mais de 140%.

A situação lembra a renúncia do então presidente Raúl Alfonsín e a posse de seu sucessor Carlos Menem em julho de 1989, cinco meses antes da data prevista, em meio a uma hiperinflação, assinala o cientista político argentino Eduardo Viola.

A emergência econômica e o vazio de poder reduziriam ainda mais o já escasso tempo que Milei tem para organizar uma base no Congresso que lhe garanta governabilidade. Seu partido, Liberdade Avança, elegeu apenas 38 dos 257 deputados e 8 dos 72 senadores.

Para ampliar sua base, ele conta com o apoio da frente Juntos pela Mudança, parcialmente liderada pelo ex-presidente Mauricio Macri e pela rival de Milei no primeiro turno, Patricia Bullrich, que ficou em terceiro lugar. Por isso, Milei agradeceu, no discurso da vitória, a ambos por, “de forma desinteressada e em ato de grandeza, defender a mudança de que a Argentina precisa”.

APOIO. Se estivessem “juntos”, os deputados da frente, com 93 cadeiras, seriam insuficientes para garantir maioria a Milei na Câmara, embora não no Senado. Mas existem partidos na frente, como o do prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que estão mais ao centro e não gostam de Milei.

Por outro lado, na Argentina, as províncias dependem das verbas do governo central. Há uma tradição de os governadores fecharem acordos com o presidente e garantirem apoio das bancadas provinciais às propostas do governo.

Além disso, o peronismo, esse movimento heterogêneo ao qual pertencem Massa, Fernández e Kirchner, sai debilitado. Até ele se reagrupar e encontrar novos líderes, talvez não esteja suficientemente armado para inviabilizar o novo governo.

Milei era o favorito nas pesquisas. O que ninguém previa, nem mesmo a equipe dele, era a margem de 12 pontos porcentuais. Esse resultado mostra que o eleitorado de Bullrich, que teve 24% no primeiro turno, migrou em massa para Milei no segundo. O presidente eleito teve 30% no primeiro turno e 56% no segundo.

Isso dá a ela e a Macri, líderes do PRO (Proposta Republicana) grande ascendência sobre o novo governo. Esse poderia ser um fator moderador da gestão Milei. Bullrich apresentou na campanha uma plataforma de reformas para cortar gastos públicos. É consenso entre economistas sérios que a Argentina precisa disso com urgência.

Por outro lado, Bullrich e Macri não acreditam nas medidas mais radicais, como a dolarização. Embora Macri tenha um trauma com o chamado gradualismo, que o levou a só aumentar os juros quando era tarde demais e a inflação estava sem controle.

Entre a recusa do gradualismo por Macri e Bullrich e a dependência de Milei do apoio da direita e do centro, pode ser que o presidente eleito encontre um ponto de equilíbrio e moderação. Mesmo nesse caso, as tarefas que ele tem pela frente são hercúleas.

As reformas necessárias incluem o corte de subsídios para serviços e produtos essenciais, como energia. Os gastos excessivos ao longo de décadas provocaram a alta dos preços e o empobrecimento da população, que por sua vez aumentou a dependência desses subsídios, em um círculo vicioso. Rompê-lo será doloroso.

BASE. Milei pode não ter uma base sólida no Congresso, mas assume com o apoio de 14,3 milhões de votos, 3 milhões a mais que Massa. O presidente eleito venceu em 21 das 24 províncias (incluindo a cidade de Buenos Aires), embora tenha sido derrotado na mais importante, Buenos Aires. Esse capital político pode significar também apoio nas ruas, quando enfrentar a previsível resistência a medidas impopulares por parte dos sindicatos, controlados pelo peronismo.

Mas essas medidas afetarão também os seus seguidores, e serão um teste da confiança deles. Assim, Milei terá de demonstrar habilidade para negociar e ceder. Num certo sentido, essa foi uma condição para vencer o segundo turno, e ele venceu. No debate, há uma semana, Massa foi tão agressivo e incisivo, questionando a sanidade mental de Milei e o colocando contra a parede em temas como o corte de subsídios e as privatizações, que o agora presidente eleito teve de se desmentir e moderar suas propostas. Com isso, Massa ajudou Milei a garantir os votos que o levaram a essa vitória de 56% a 44%.

Essa flexibilidade sofrerá testes maiores a partir de agora. Algo parecido se aplicará às relações com o Brasil. Milei chamou o presidente Lula de “ladrão” e “comunista” e disse que não se reuniria com ele. O presidente eleito é a favor do livre comércio, e portanto da redução drástica da Tarifa Externa Comum do Mercosul. Já Lula é protecionista.

O embaixador do Brasil em Buenos Aires, Julio Bitelli, contou que fez contatos com Diana Mondino, cotada para a chancelaria de Milei. A mensagem é de que eles querem “modernizar o Mercosul”, algo a que o governo Lula não se oporia, segundo o embaixador. “Vai haver discussão mais profunda entre os sócios do Mercosul para ver qual caminho seguir.”

Depois de Massa admitir a derrota, a conta do presidente Lula no X (antigo Twitter) parabenizou “as instituições argentinas”, o que não deixa de ser uma estocada em Milei, que antes da vitória questionava a lisura do processo. Lula desejou “boa sorte e êxito ao novo governo”, sem citar Milei, e colocou o Brasil “à disposição para trabalhar junto” com a Argentina. O momento exige flexibilidade de todos os lados.

 

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