domingo, 5 de novembro de 2023

Muniz Sodré* - Educação em apuros

Folha de S. Paulo

EAD é experimento de automação do positivismo educacional

O Brasil ocupa a terceira pior posição em investimento público na educação básica. Fato gravíssimo: um terço dos jovens abandona a escola antes de concluir o ensino médio. Não é só questão de verba, e sim de falência do verbo educar, ou seja, má qualidade de ensino. Inexiste programa sério de capacitação de professores, enquanto avança a proliferação do ensino a distância (EAD). Um grupelho de universidades privadas domina o setor, com número de inscritos superior ao de todas as instituições públicas. Mas estas, na avaliação do Enade de 2022, tiveram melhor desempenho que as privadas.

Sistematicamente, os estudantes de EAD têm conceitos mais baixos que os presenciais. Sabe-se que disciplinas relativas a cálculos e mecanismos se prestam bem à instrução online, porém não se sabe como, em certos casos, um único tutor possa acompanhar centenas, senão milhares de inscritos. Outra questão é a evasão técnica: alunos se ausentam, deixando seus avatares nas telas. A pior de todas é a rasteira perspectiva pedagógica de que "bastam português e matemática".

Essas duas disciplinas, em que estudantes brasileiros revelam baixa proficiência, são vitais à tecnologia, embora não sob um positivismo culturalmente excludente. De fato, no domínio da criatividade, as big techs não pautam sua prática pela camisa de força, hostil à criação, com que o positivismo vestiu o conhecimento. Para Emmanuel Carneiro Leão, filósofo e educador falecido em outubro, pensar tem mais a ver com criação do que com cálculo.

A pedagogia positivista serve para passar no Enem, consolidar os rendosos monopólios de ensino e reproduzir elites de poder. Nesses termos, a universalização do acesso à escola é também apequenamento de qualidade, secundado pela pauta retrógrada da ultradireita, que agora avança sobre conselhos tutelares. Corporeidade infantil é matéria-prima para a hipocrisia moralista.

Só que existem corpos sociais e corpos raciais. Os primeiros integram-se na comunidade étnica hegemônica. Corpos de raça são aqueles que, no tráfico negreiro, "podiam ser comprados e vendidos, postos no trabalho como fontes privilegiadas de energia" (Achile Mbembe em "Corpos-Fronteiras"). Desses foram sucedâneos os escravos da máquina, operários, ou qualquer corpo de segunda classe.

A EAD destina-se a corpos raciais como experimento de automação do positivismo educacional, uma forma acelerada de adestramento que ignora a diferença entre produtividade e criatividade, entre instrução técnica e formação humana. De modo geral, excesso de informação é recesso de compreensão. Já a velocidade circulatória suprime pausa, ambivalência, reflexão e, no limite, a própria educação, estruturalmente mais lenta. Junto aos jovens, vence o TikTok. É o epitáfio do professor.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

 

 

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