sábado, 18 de novembro de 2023

Pablo Ortellado - Delírios da direita atrapalham fiscalização do governo

O Globo

Denúncia foi associada à tese de que o PT seria o braço político do crime organizado

Numa democracia funcional, cabe à oposição sustentar a rigorosa fiscalização do governo. Em nosso ambiente polarizado, porém, muitas vezes ocorre o oposto: a irrazoabilidade da oposição cria obstáculos ao escrutínio das ações do governo. Imprensa, Justiça e órgãos de controle abandonam linhas de investigação com receio de alimentar um delírio que pode ter consequências nefastas. Vimos esse mecanismo em ação nesta semana no caso da esposa do líder do tráfico do Amazonas recebida por autoridades do Ministério da Justiça.

O jornal O Estado de S.Paulo noticiou que a mulher do líder de uma facção criminosa amazonense — condenada, ela também, em segunda instância por participar de atividades criminosas — fora recebida em audiência por um secretário e importantes assessores do Ministério da Justiça. A reportagem não era devastadora, mas acendia um alerta. Não havia motivo para supor que o governo tivesse deliberadamente recebido alguém com vínculos com o crime organizado. Mas tinha havido uma falha na segurança, na inteligência e nos protocolos do ministério que precisavam ser apontados e corrigidos.

No decorrer da semana, quando a imprensa revelou que ela havia viajado para Brasília com recursos do Ministério dos Direitos Humanos e que também fora recebida pelo Conselho Nacional de Justiça e se encontrara com parlamentares, a falha se mostrou maior e mais disseminada.

Se a imprensa revelasse o problema, e a oposição o condenasse, estaríamos no jogo regular da democracia. Mas havia outro elemento, subterrâneo, que complicava a situação. No submundo da política da direita, nas mídias sociais, prospera a ideia estapafúrdia de que o PT e o crime organizado têm laços fortes e profundos. Em alguns casos, se chega a dizer que o PT é o braço político das principais facções criminosas do Rio de de São Paulo. Não se trata propriamente de uma notícia falsa, mas de uma tese duradoura que vem sendo alimentada por uma série de mentiras e distorções nos últimos anos. Não há nenhuma evidência persuasiva que sustente uma acusação dessa gravidade — mas há uma profusão de insinuações, ilações e mentiras. Não obstante, ela parece amplamente difundida entre a militância e o público de direita.

A referência implícita a essa tese subterrânea absurda transformou uma falha nos protocolos para audiências com autoridades num caso gravíssimo. No discurso da militância e de alguns parlamentares, era como se a audiência revelasse ligações do PT com o crime organizado. A coisa atingiu tal proporção que o próprio presidente Lula saiu em defesa do ministro da Justiça, Flávio Dino.

Uma vez que a denúncia foi associada à tese de que o PT seria o braço político do crime organizado, o tema ficou contaminado pelo estigma da birutice. Pessoas sérias passaram a se afastar dele — para não ser confundidas com os fanáticos e para não alimentar o delírio. O resultado é que o tema vai aos poucos saindo de pauta e ficando restrito ao recanto onde reside a gritaria engajada.

Isso é ruim para a democracia. Esse tema deveria ser mais investigado porque, obviamente, há um problema em alguém condenado por participar do crime organizado, que a polícia acredita fazer uso de uma ONG fajuta para promover os interesses da facção, se passar por uma legítima ativista de direitos humanos indicada por um comitê estadual oficial.

O caso parece mostrar que o crime organizado não está apenas se infiltrando na Justiça e na política, como mostram algumas reportagens, mas também nas ONGs. Seria bom se pudéssemos investigar e entender o alcance disso sem medo de sermos capturados pelo discurso delirante.

 

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